Aquilo que nos ilumina por dentro

Aquilo que nos ilumina por dentro

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Prometi e agora cumpro. Disse que contaria aos leitores as histórias dos presentes que ganhava de um tio, ferroviário, que na época do Natal aparecia lá em casa e sempre me levava um regalo. Eram presentes simples, às vezes até usados, mas interessantes e que, para mim, se tornaram inesquecíveis. Um guri, o senhor e a senhora sabem, não precisa de pouco para ser feliz e eu era apenas um menino campeiro. Qualquer coisa que ganhasse já me deixava radiante. Por isso lembro de todos eles. O primeiro foi uma bola, novinha e branca, de couro, que sai a dar chutes pelo campo até cansar. Durou muito aquela pelota e com ela fiz meus primeiros gols, até me tornar um disputado camisa 9 lá na Vila Rica. Diziam que era ligeiro, bom cabeceador e com a vantagem de chutar forte com os dois pés. E tinha faro de gol, ah, isso tinha. Minha vida de atacante de várzea, contudo, terminou quando comecei a ser caçado por zagueiros toscos que me faziam chegar em casa arrebentando, com as pernas sangrando e mancando. Então minha mãe decidiu que era hora de parar.  "Futebol nunca vai te dar futuro. Tens que estudar".  Então, mesmo contra minha vontade,  avisei meu técnico, seu Paulo Moreira, que arranjasse outro goleador.

Outros dois presentes estão ligados à luz. Como morávamos na campanha, sem energia elétrica, uma lanterna e um lampião eram fundamentais. Em um ano ganhei uma linda lanterna de duas pilhas médias. Era de alumínio, que reluzia no escuro. O tio havia mandado gravar meu nome no metal o que me deixou orgulhoso. Mostrava a todos, que queriam ligar e desligar os botões de luz fraca e luz forte. E tinha, ainda, um botão para piscar. Num outro ano, ganhei o famoso lampiãozinho a querosene. Na primeira noite, depois de encher o recipiente de combustível, acendi o pavio, ajustei a chaminé de vidro e  comecei a ler Lendas do Sul, do Simões Lopes Neto. Lia uma página e ficava a admirar a luz amarelada, a mexer na pequena chave que controlava a altura do pavio e da chama. Durou anos aquele lampião, até o dia em que a energia chegou em nossa casa e o presente acabou abandonado em cima de uma prateleira.

Depois, já homem feito e morando na Capital, tomei a decisão de ir até a cidade onde morava meu tio para agradecer-lhe outra vez pelos lindos presentes que havia me dado. Contudo, ao chegar em frente a casa dele, senti uma coisa ruim, um aperto no coração. A tia, já bem velhinha, saiu de dentro de casa e, ao me reconhecer, começou a chorar. Soube, então,  que o tio havia morrido um ano antes. "Ele sempre falava em ti", disse-me ela.  Antes de retornar, pedi para que me acompanhasse ao cemitério . Ao lado de sua tumba, declamei até o fim,  com aperto no coração, o "Tobiano Capincho", do Aureliano, que o tio tentara me ensinar e que nunca conseguia decorar.

Porque além dos presentes, o tio havia me repassado seu gosto pela poesia gauchesca, mesmo sendo um homem urbano, que tinha feito a vida dentro dos trens. E, os melhores presentes, meus amigos, não têm gosto nem cheiro, nem valor monetário. São como poemas, de onde brotam versos que nos iluminam por dentro...

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