As carneadas

As carneadas

Depois de tudo, caía um silêncio que só era quebrado, à noite, pelo barulho dos bichos lambendo o sangue coalhado

Paulo Mendes

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Dia desses me lembrei das carneadas, quando tudo se transformava numa espécie de festa, um evento atípico naquele tempo da infância. Era um dia, geralmente um sábado, totalmente diferente dos outros. A função começava numa madrugada das boas, pelas 4h, quando o Carrapicho, meu tio, acendia um fogo grande para esquentar a água do panelão de ferro emprestado pelo nosso vizinho seu Orci Dal Forno. Eram dois tipos de carneada, uma só de porco, e a outra maior, de um porco e uma rês, geralmente uma novilha falhada. Esta carneada dupla, de porco e vaca, era para diminuir os custos, aproveitar o ensejo, a reunião de pessoas, o mutirão que era preciso fazer para dar conta de todo o processo. Além da dificuldade que era reunir especialistas como o laçador, o sangrador, o coureador, etc. Nas estâncias, normalmente havia muitos peões e não havia dificuldade para fazer esse trabalho. Mas nas chácaras era preciso contar com parentes e vizinhos. 

O porco era gordo, enorme, nem caminhava mais. Era sangrado com a faca prateada do pai pela mão certeira do seu Orci. O vizinho era um descendente de italianos muito habilidoso, plantador de videiras, fazia vinhos excelentes e cultivava hortaliças. Sua chácara, ao lado da nossa, era um brinco de tão bem cuidada e organizada, em contraste com a nossa propriedade, onde tudo, afora a casa principal, era feito de forma informal, “ao jeito de tropeiro” como se dizia. Depois de morto, o bicho era lavado, limpo, e logo em seguida pelado com água fervendo. Na sequência o animal era aberto ao meio, com separação das vísceras e esquartejado. O filho do seu Orci, o Clécio, sempre foi meu melhor amigo. Nós acompanhávamos tudo, faceiros ajudando os carneadores.

A novilha poleanga vinha no laço, arisca, olhando com medo, pois como sabem, os bichos têm alma. Quando o seu Neto a sangrava com a adaga longa e afiada, a sanguera espirrava num jato forte e colorado, pintando de vermelho a terra castilhense. Esgotada, se ajoelhava no chão que a vira nascer e crescer no campo e, por fim, tombava com os olhos abertos como tentando ver pela última vez o verde das coxilhas e o azul do céu. O couro era tirado com cuidado e esmero para que nenhum corte o estragasse. Depois de tudo, caía um silêncio que só era quebrado, à noite, pelo barulho dos bichos lambendo o sangue coalhado.

Aprendi a fazer churrasco nessas carneadas, com o fígado, os rins e o coração do porco, que era assado num espetinho de pau. Usávamos, eu, Clécio e meu irmão José Luiz, o braseiro do fogo para assar nossos primeiros espetos. Era uma alegria e um aprendizado. Depois, quando virei adolescente, segui assando churrasco no fogo de chão. Em Santa Maria, já universitário, aprendi a assar em churrasqueiras. Ao conhecer o Uruguai, quis fazer uma parrijada, e hoje asso carne tanto em espetos como em grelhas. Entendi os segredos do churrasco, as diferenças entre o fogo de carvão e o de lenha, se usamos sal grosso ou fino. Variam formas, jeitos, maneiras e motivos, mas tudo começou cedo, lá naquelas distantes carneadas. Nosso passado dialoga e desenha nosso presente. É a memória e isso nos faz mais autênticos. Cada um de nós traz a sua verdade debaixo do poncho. 


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