As quietudes

As quietudes

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         Ando gelado de julho, perpassado de fogo, quebrado de geada, quieto como convém para nós, a gente do Sul, proseando com o Senhor Inverno, que sempre volta envolto em seu poncho de tristezas gris. É o tempo das pelúcias, das lãs, das botas, das capas por  sobre os corpos dos homens e dos animais. Os cavalos quebram milho nos galpões e as chuvas chegam guasqueadas, as chamas trazem círculos de instinto e de mistérios para que se recontem as bravatas,  para que se reescreva os feitos heróicos. Ah, essas invernias lívidas como os semblantes das senhoras ancestrais que arrastam alpargatas barbudas pelo assoalho. Noites emborcadas de silêncios, perdidas no tempo e na memória dos avoengos que se foram, que hoje moram dependurados nas molduras dos quadros das paredes. Fantasmas em procissão avançam nessas noites longas, uivam pelos umbrais, pelas esquinas, pelas várzeas e capões. Rostos tentam te ver através das janelas,  mas como é difícil te enxergar, pois mais que corpo tu carregas um sentimento. És hálito de frio e vento.

         Estamos nós aqui a te esperar nessas quietudes, em tardes brancas, enrugadas pelo couro dos bichos, das vacas tambeiras ungidas e grudadas na restinga. Silêncios quebrados pelo estalo da lenha, pelo latido dos cães, pelo cantar dos galos lá quando a madrugada cansada começa a espreitar o dia. E às vezes, essa quietude é quebrada pelo soluço do vento galopando louco pelos oitões do rancherio. Eu também emudeço, inverno velho, e te espero passar. Enrodilhado como um laço de doze braças, te vejo explodir em gelo, depois agonizar,  dizer adeus e ir embora.

         Em muitas manhas chuvosas, meus olhos  também viram caudais de enchente recordando tempos que vivi e que não voltam mais. Os amigos que se foram, meus brinquedos de infância, meu cusquinho Gemada, os colegas da escolinha, os jogos de bola nos finais de tarde, lá ao lado das taquareiras. Naquela época, Senhor Inverno, a vida era tão simples. O que mais queria era apenas estar ao lado do pai mateando defronte ao fogo. Comer aquele feijãozinho que a mãe fazia no fogão a lenha. Brincar com meu irmão no campo. E deitar na grama olhando para as nuvens que faziam centenas de desenhos no céu. Não, isso não volta mais e, ainda por cima, esse inverno brabo que me congela os ossos.

         Mas não me entrego para este pavena. Ficarei com os olhos bem abertos. Depois das friagens sei que virá a primavera montada num alazão cintilante, repontando tropas de luz e trazendo flores perfumadas na garupa...























 















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