Cidão elogia a vida

Cidão elogia a vida

Aparecido Tardelli Antunes já estava com mais de 80, sempre fora esquecido, porém naquele dia sua memória ressurgia com toda força outra vez

Paulo Mendes

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Foi o próprio Cidão Antunes que me apontou um antigo e reformado conjunto de sofá, para que tomássemos “um mate”. Logo que dona Salete, a sua “gata borralheira”, trouxe os apetrechos, com o chimarrão já cevado, mostrando um enfeite sobre a erva, começamos a matear e a charlar sobre os fatos de muitos anos atrás. O rapaz, Aparecido Filho, enchia a cuia e ia distribuindo, um para o pai, outro para mim. De vez em quando, o filho de Cidão enchia uma cuia para si próprio e se surpreendia com a vivacidade do progenitor nesta tarde. “Quando está feliz fica assim, faceiro e lembra de tudo”. “Eu esqueço mesmo das coisas quando me deparo com um cobrador”, brincou o Cidão, mantendo a verve alegre de antigamente. “Agora, se é para cobrar alguém minha memória fica tão boa que parece que fui criado tomando Biotônico Fontoura”, completou. 

Aparecido Tardelli Antunes já estava com mais de 80, sempre fora esquecido, porém naquele dia sua memória ressurgia com toda força outra vez. “Sempre gostei de andar em tropeada, era uma ‘deversão’ aquilo, nem parecia trabalho. Comecei ainda moço, uns dezessete, dezoito, nem havia servido. Depois que sentei praça em São Gabriel, aí sim, passava dias e dias enforquilhado no lombo de matungos, daqui pra lá, de lá pra cá, sempre e sempre. Não teve fazenda que eu não tenha buscado ou levado gado, eu e um grupo, às vezes eu, seu Neto e o Zeca Mendes, por outras, uma comitiva grande, seis ou sete, nessas ia sempre de capataz, fiscalizando, organizando as pousadas, cronometrando as distâncias. Boiada minha andava devagar para não perder peso, bebia bastante água, nada de pressa. O senhor sabe, a vida é curta, mas nem tanto, tem o tempo para tudo. Assim foi.” 

Numa volteada do mate, sorveu devagar, fechou o cenho, fez a cuia roncar e se parou quieto. Depois disse: “Cheguei ao fim de minha jornada, infelizmente. A vida é assim, não tem jeito. Ah, como queria ter mais tempo de olhar para esses campos floridos na primavera, ouvir a passarada ao amanhecer, mirar as estrelas numa noite clara, saborear uma costela assada num meio-dia de domingo, beber água fresca de vertente, matear numa madrugada fria, batendo tição com tição, ouvir o relincho de meu tordilho na estrebaria, a gadaria reunida na mangueira, essas coisas tão simples que fiz a vida toda e nem percebia como eram tão boas.” 

Vendo Cidão tristonho, tentei animá-lo. “O senhor sempre trabalhou no que gostava, se divertia com a gaita e os versos, construiu família, viveu bastante”, disse. O velho tropeiro me encarou e retrucou: “Sim, sei disso, mas tenho pena de ir embora deste mundo. Saber que nada voltará, que findou, terminou. Eu gosto tanto de viver...” E levantou o braço dolorido por tantas quebraduras, encostou o dorso enrugado da mão direita no rosto e enxugou o olho esquerdo, a vista que era boa, já umedecida, transbordando, quase soltando uma lágrima. Bem nesse momento, se formou um cerro na minha garganta, quis dizer tanta coisa, mas nada saiu de minha boca cerrada, “porteira do coração”. E ficamos em silêncio. Dali a pouco, por sorte, o Cidão, por conta, quebrou a quietude tensa da sala, que dormitava envolta em solidão e memória: “Do que mesmo estávamos falando?”... 


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