Cidão, o esquecido

Cidão, o esquecido

Era respeitado como tropeiro responsável, desses de nunca deixar uma rês na estrada. Porém com o passar dos anos ficou esquecido

Paulo Mendes

publicidade

Aparecido Tardelli Antunes, o Cidão, foi um dos melhores peões que conheci. Quando jovem, montava um douradilho que era uma beleza, o seu pingo domingueiro. Cidão dizia poesias e compunha músicas regionalistas. Quando apeava, antes de entrar em nosso bolicho, atirava o pala para as costas e improvisava uns versos: “Paulinho, me sirva um trago, que já venho bem aflito/ Costela se faz assada, já o peixe eu como frito/ Só não dá pra passar fome neste rincão do Cerrito...” E sempre um gaiato respondia, já entusiasmado pelos copos de “samba” ou de canha com limão que havia entornado. Cidão, aos domingos, trazia a gaita atada nos tentos e, depois de uns aperitivos, buscava o “estrumento” e sapecava marcas conhecidas e algumas de sua autoria. 

Era respeitado como tropeiro de alta qualidade, responsável, desses de nunca deixar uma rês na estrada. Porém, com o passar dos anos, o Cidão começou a ficar esquecido. Um pouco porque se envolvia com seu processo artístico, outro tanto porque foi vítima de um acelerado processo de amnésia. Certa vez, comprou um picolé no bolicho do Miro e saiu ao tranco do douradilho. Num pontilhão da estrada, decidiu jogar o palito na água, mas como estava com o chapéu na mão, atirou o chapéu e chegou em casa segurando o palitinho. Depois, quando levou um lote de novilhas de uma estância a outra, pernoitou na Estância da Goiabeira. Havia, nesta tropa, quatro ou cinco animais brigões, e o Cidão decidiu apartá-los, deixando-os na mangueira. De madrugada, botou a tropa na estrada e esqueceu de soltar os bichos da mangueira. Um parceiro, que ia de ponteiro, deu falta, mas aí estavam chegando ao destino. 

Mas disso o Cidão dava risada. “Me distraio muito”, alegava. Até que um dia, o gaúcho esqueceu que andava esquecido e começou a lembrar das coisas, voltou a ser normal. Muitos atribuíram ao amor, porque o Cidão estava amando uma moça, simples e bonita, cozinheira num restaurante nas imediações da cidade. Chegava a pensar dias em versos para mandar para ela. Um deles me recitou antes de encaminhar o bilhete: “És a prendinha mais linda, desta terra missioneira/ Contigo eu paro com as tropas e vivo à tua maneira/ Eu serei o teu peão e tu. minha gata borralheira...”. Perguntei-lhe se sabia o que era “gata borralheira”, disse que “por cima”. Mas salientou ser o apelido da Cinderela, a menina órfã de um conto de fadas que ouvira da professora, dona Lina. 

Depois, quando deixei a Vila Rica para cumprir minha sina, nunca mais soube do tropeiro “esquecido”. Recentemente, ao visitar familiares, disseram que o Cidão morava numa casa humilde com sua “Cinderela” e um filho. Fui bem recebido pelo rapaz, que disse: “aguarde que irei chamar o pai”. Foi grande minha emoção ao ver aquele ancião caminhando devagar, arrastando as alpargatas, com olhar de espanto. “O senhor quem é mesmo?”, disse-me, apesar de o filho ter dito-lhe meu nome várias vezes. “Sou o Paulo, filho da dona Mirica, a bolicheira”. Então se animou: “Ah, o Paulinho da bodega, meu Deus, como estou esquecido”. Seu filho, parecido com o pai, brincou: “Esse está bem esquecido mesmo, tão esquecido que esqueceu até de morrer.” E caímos todos na risada...


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895