Coplas dentro da noite

Coplas dentro da noite

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Alguém já disse (Teria sido Aureliano ou Sérgio Jacaré?) que o homem é uma sobreposição de pesadelo e sonho, de passado e futuro.  Que é tudo aquilo que faz e o que não faz. Acrescento, somos aquilo que vivenciamos, as nossas experiências, medos e tudo aquilo que pensamos realizar e, por algum motivo, não concretizamos. Somos a nossa memória e no que a transformamos.  Agora, aqui mateando e olhando para um guri que sesteia debaixo de um flamboyant da Redenção, recordo de quando dormia sobre meu colchão de palha nas madrugadas da Vila Rica. Ah, era apenas um menino que lia edições antigas do Correio do Povo à noite, antes de dormir, sob a luz de um velho lampião à querosene. Nunca esqueço aquele meu lampiãozinho, todo amarelado pelo tempo, com o vidro encardido. Hoje, quando visito essas lojas de antiguidades, reparo em alguns lampiões, mas nunca vi um igual ao meu, presente de um tio. Um outro dia ainda contarei aqui os presentes maravilhosos que este tio ferroviário sempre me ofertava nos meus aniversários.

Quando assoprava a luz e o quarto escurecia, ficava quieto, escutando os ruídos da noite. Às vezes era o vento balançando os galhos do arvoredo, perto do meu quarto, nas laranjeiras. Mais para baixo,  as taquareiras e seus gemidos. Como lembro de tudo isso agora, se hoje esqueço o que fiz há alguns minutos?  Será por causa da lembrança afetiva? não sei, só sei que puxava meu poncho furado, firmava o ouvido e ouvia ao longe, ao Leste,  o ronco dos motores dos caminhões que varavam a faixa federal, carregados de grãos, de bichos. Ao Sul, escutava ainda muito longe, o trem noturno de vários vagões singrando as coxilhas prateadas de luar. Depois o comboio vinha se aproximando, lentamente, e eu ali, escutando, pensando em quem vinha dentro, pensando como seria um dia pegar um trem e ir embora, conhecer outras paragens. Será que um dia teria coragem de ir?

Certa feita perguntei ao seu Turíbio o que se passava na noite. "Passa de tudo, meu filho, o roubo de vaca, o romance proibido e a carpeta. Além disso, existe um mundo noturno que não vemos, há criaturas que só se movem com a luz do luar, bem na meia-noite, a hora do lobisomem, da mula-sem-cabeça, do saci e das assombrações ", disse o velho. Então ficava a pensar nisso tudo, amedrontado. Foi durante várias noites que li Erico Verissimo e me extasiei com Ana Terra e o Capitão Rodrigo. Numa noite calorenta e de lua cheia li, pela primeira vez, Lendas do Sul, do Simões Lopes Neto. Então sempre uni sonho, vento, espera e  pesadelo com as noites do Sul. Hoje minhas noites são permeadas por roncos de veículos, buzinas e gritos de jovens urbanos. Não sei, às vezes, na confusão dos ruídos, parece que ouço o longínquo vestígio do trem. Aquele mesmo trem que num final de tarde de outono subi num de seus vagões carregando minha maleta e vim dar os costados aqui. Também me acostumei a escrever à noite, ouvindo minhas imaginárias coplas perdidas e que reconstruo, verso a verso, frase a frase, devagar, campereando e reinventando meus noturnos recuerdos...

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