Lembranças do Tio Lagarto

Lembranças do Tio Lagarto

publicidade

         Era um mulato velho, tropeiro e esquilador, simpático, tinha um jeito despachado o Tio Lagarto. Estava sempre no bolicho lá de casa para tomar um trago de vinho. Todos nós  gostávamos dele. Trabalhava na Estância da Divisa desde piá.  Tivera tantas desilusões na vida,  mas era otimista, ria e se divertia, de nada reclamava apesar de suas pobrezas. Ninguém o via se lamentar ou proferir ofensas. Era quem eu esperava nos finais de semana para servi-lo e ouvir suas histórias.

         Quando meu pai pediu para escolher um padrinho, decidi pelo Tio Lagarto. O pai me disse, pensa bem, ele é um homem muito humilde. Respondi que era isso mesmo que queria, um padrinho simples, um homem que me ajudasse a descobrir o mundo, não queria presentes e, se pudesse, eu também poderia ajudá-lo. "Pai, quando a gente morre não leva nada, só as boas lembranças das pessoas que amamos,  não importa dinheiro, poder ou alta posição social. Entre um fazendeiro e um peão, fico com o peão, tem jeito de gente, cheiro de terra. Parece mais comigo."  Meu pai sorriu, não disse nada e duas semanas mais tarde fui batizado na capelinha do Barro Preto. Minha madrinha foi a professora Lina.

         Tio lagarto me ensinou a pescar, a não maltratar os animais, a ter humildade e a respeitar a força que os homens têm. Um dia disse-lhe que queria ser como ele, mas Tio Lagarto me advertiu: "Imite apenas minhas atitudes, mas não pare de estudar, para não terminar a vida como eu, sem nada. Aliás, quase nada, porque hoje sou padrinho de um guri que pra mim é como um filho e isso me basta."

         Aquilo me tocou e, um dia, descobri que ele nunca tinha comemorado aniversário. Então,  num dezembro preparamos, eu e os amigos dele do bolicho, um churrasco de ovelha no domingo do seu "cumpleaños", como dizia em espanhol.  Quando chegou montado em seu bragado, indagou que festa era aquela. "É para o senhor,  padrinho, feliz aniversário!"  O velho homem fazia 80 anos e quase morreu de emoção. Vi brotar de seu olho esquerdo uma lágrima grossa e logo depois o padrinho me abraçou. Também havíamos comprado uma pilcha completa e, pelo menos naquele dia, Tio Lagarto se sentiu um gaúcho de verdade, um homem inteiro. Dois meses depois morreu. Depois de passar por tantos perigos, deixou a vida sentado na frente de seu rancho, olhando o campo iluminado pelo sol claro e bonito que tanto amava. Foi por gostar de   "lagartear" que ganhara o famoso apelido.

         Hoje, quando estou acabrunhado, com a alma nublada, peço sua benção, pois ela me salva. É uma luz que me invade, ilumina e guia.

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895