Maribela, o Guaíba e os cheiros

Maribela, o Guaíba e os cheiros

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Quando o expediente terminou, Maribela pegou a bolsa, se despediu dos colegas e se dirigiu a passos largos para o rio.  Depois de tantos dias de chuva, naquele sábado havia uma luz difusa, típica dessas primaveras ventosas. Preferia ver o rio no outono, a ventania primaveril a incomodava,  mas agora estava com saudade do rio, fazia tanto tempo que não ia mais lá. A Rua da Praia tinha pouco movimento naquele sábado. Na frente da Casa Mario Quintana lembrou quando chegara à Capital. Uma das primeiras coisas que fez foi visitar a casa onde morou o poeta que tanto amava, que lia aos borbotões em sua cidadezinha, na costa do Jacuí, perdida entre morros. Quando menina, achava aquele lugar tão grande, mas agora até a igrejinha onde fora batizada parecia tão minúscula. "É assim", pensou, "com o tempo as coisas perdem tamanho."

Tirou da bolsa a cuia já com a erva e a garrafa térmica. Antes de sair do trabalho a tinha enchido com a água quente, "nunca fervida", como lembrava a mãe, a professora Dorvalina, que agora descansava seu corpo cansado no cemitério do Espinilho. Quanta saudade tinha dela, quanta falta ela fazia. Não tinha nem mais vontade de voltar para o Interior, sem a mãe tudo ficava sem graça. A mãe enchia a casa de cheiros bons, cheiro do feijão, cheiro de doces, cheiro dos bolinhos de chuva. Às vezes, Maribela acordava sentindo o perfume do talco Cashmere Bouquet que a mãe usava. Não sabia onde comprava ainda aquele talco, ou se havia feito estoque.... E as flores? Dorvalina desde menina adorava as flores do campo. Na primavera enchia a casa delas, de todas as cores. A casa toda limpinha, a chapa do fogão brilhando, os panos de prato tão alvos, a mania de escutar os avisos no velho rádio de pilha, enorme, de madeira, sobre a mesa.

Depois do terceiro gole, lembrou do pai, o tropeiro  João Manoel, sentado no seu banco preferido, mateando, fumando o palheiro, escutando futebol ou se esquentando no fogareiro a carvão. Gostava de sentar ao lado do pai e dormir com a cabeça sobre a velha bombacha com cheiro de pelego, cheiro de terra lavrada, cheiro de sereno. Cuspiu um pouco do mate bem como o pai fazia quando estava triste, quando algo o perturbava. Tirou o cabelo preto dos olhos. Agora sentia um cheiro de algas e Maribela ficou a olhar uns canoeiros que pescavam, e o barquinho que deslizava lentamente sobre as águas. Sua vida andava assim, deslizando devagar, sem nada acontecer, ou muito pouco.

Depois, já no seu minúsculo apartamento da Cidade Baixa, deu banho no filho pequeno e aquele cheiro de criança a fez de novo lembrar de quando era menina. Tomava banho num bacião de alumínio. Por onde andasse havia de sentir os cheiros que lhe faziam lembrar das coisas antigas, passadas. Então esmagou uma rosa que comprara na esquina e deixou perto do filho que a cheirou e a olhou sorrindo, como um anjinho. Maribela o abraçou e sentiu, entre as lágrimas, o cheiro da esperança...

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