No osso do peito

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No osso do peito

Vinham solitos, ele e o rosilho, ao tranco, lá da invernada do fundo.  Era um fim de tarde abafado e o Turco mirava o horizonte virente dos campos como um capitão que perscruta o mar. Ao longe, os caponetes, as verduras mudando de cor e os bandos de pássaros cruzando a restinga.  No lusco-fusco havia um cheiro de orvalho, sereno caindo misturado ao esterco fresco da novilhada que pisara há pouco na grama forquilha, no trevo e em outras gramíneas. O alambrado estava imóvel, parecendo uma coluna em forma de soldados de pau. Dera serviço apartar aquela bicharada jovem, espevitada, ligeira, que corria de cola alçada campo afora. Quando novo também fora assim, agitado, cheio de movimentos e de sonhos. Agora não, andava quietarrão, casmurro, conversando com os animais nas soledades.

Havia se atrasado. O Alemão e seu Neto vieram na frente repontando os novilhos, mas ele ficara para trás por dois motivos. O primeiro é que precisara ir ao mato várias vezes, com uma dor de barriga terrível que o acometera desde o dia anterior. Isso é coisa que um gaúcho precise passar? O segundo, e mais dolorido, é que recebera a notícia,  no último domingo,  da morte de um tio, seu Diamantino, o velho Tino, como o chamavam.  Gauchão dos antigos, homem de respeito e palavra, ensinara-lhe tudo na lida campeira.  E o havia criado como um pai.

Estavam cansados, suados, loucos para chegar. O cavalo queria se livrar da carga no lombo.  O Turco vinha com tanta dor nas penas que botou a bota por sobre o pelego, na cabeça dos bastos. No passo, uma ideia passou-lhe pela cabeça e então esporeou o rosilho, desatou o laço e seguiu no rumo do umbu, perto da tapera velha. Passou o laço sobre um galho e quando ia colocar a rodilha no pescoço, desistiu. O rosilho olhava-o desconfiado e então seguiram de volta para casa.

Os lampiões da estância já tremulavam quando desencilhou. Os cuscos faziam festa no galpão, ao redor da peonada em alarido, que se divertia saboreando um espinhaço de ovelha.  Então o Turco avivou o borralho, achegou a cambona nas brasas e deu de mão numa cuia brasina ainda quente. Tomou um longo gole do amargo. Puxou um banco e ficou olhando as estrelas que furavam o telhado da noite escura. Tino havia-lhe ensinado que é preciso ter tutano para continuar. Foi o que tinha lembrado debaixo do umbu. Queria continuar, não queria desistir, mesmo que a vida viesse, assim, maleva.  O Turco se levantou, lavou a cara na bacia alouçada, assobiou um chamamé bem correntino e seguiu no rumo do cheiro da janta. Tutano, era preciso tutano e, para mostrar que havia aprendido a lição antiga, antes de entrar no galpão, tirou o chapéu e cantou uns versos:  "Se lembro os tempos de quebra,  a vida volta pra trás, sou bagual que não se entrega,  assim no más..."

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Correio do Povo
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