O alma penada

O alma penada

O cuera veio se esconder nesses pagos e achou aquele velho cemitério abandonado. Ali, por certo, ninguém ia encontrá-lo.

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Era aquela hora que se costuma chamar de lusco-fusco, o ponto que divide o dia da noite. A sexta-feira se prenunciava escura, de lua nova, e nem parecia uma primavera porque o outubro andava carrancudo, com cara de inverno ainda. Dentro do bolicho estavam dois proseadores, seu Turíbio e o Fastanha. Enquanto eu acendia o velho lampião a querosene, ouvi: 

- Lembra, Turíbio, daquele causo que aconteceu lá no bolicho do Miro, quando numa sexta-feira como esta apareceu por lá um sujeito estranho, melenudo, roupas em trapos, sujo, com um sotaque diferente? 

- Para de brincar comigo, Fastanha, tô velho, mas minha memória ainda tá boa. Vocês têm essa mania de me chamarem de esquecido. Eu tava lá no dia que apareceu o alma penada. Tava mesmo, de fato. 

- Ah, bueno, então conte bem como foi, pois disseram, na época, que o sujeito havia saído do cemitério, era um morto-vivo, um zumbi, bicho feio mesmo. 

Nisto eu, que era apenas um piá, já estava todo amedrontado. Tinha sido criado no campo, ouvia todo tipo de histórias, o senhor e a senhora sabem como é o povo do Interior, gosta de aumentar os fatos, exagera um pouco aqui, outro ali, quando se dá conta “o bochincho já está formado”. Mas esta estava indo longe demais. 

- Já contei várias vezes este causo, mas vou contar de novo. O tal xiru esse chegou já de noite, mulambento mesmo, o pessoal ficou bem desconfiado, ninguém o havia visto antes e por aqui todo mundo se conhece. Roupa rasgada, barbudo, descalço, mais parecia um mendigo, mas não havia esse tipo de gente por essas bandas. Entrou faminto e o Miro demorou a entender o que ele dizia. Mas tinha uns trocados amassados nos bolsos de uma calça imunda. Comeu sardinha, linguiça, biscoito, o que havia nas prateleiras ele devorou. Depois foi embora. Dias depois, ele apareceu de novo, do mesmo jeito. 

- Mas ninguém foi atrás dele, para ver onde se metia? 

- Calma, Fastanha. Nesta segunda vez o Surdinho foi. Nós demos uma lanterna para ele e ficamos aguardando. Depois de uma hora, assim, mais ou menos, o Surdinho retornou sem fala, apavorado. 

- Por que, Turíbio, por que, o que tinha acontecido? 

Àquela altura dos acontecimentos meu coração batia forte e só o que fazia era olhar para as portas e janelas, provavelmente mais assustado que o próprio Surdinho. 

- Quando recuperou a voz, o Surdinho falou que viu o estranho entrar no Cemitério dos Buracos, aquele que fica lá em cima do barranco, e sumir entre os túmulos. 

- Então era um morto mesmo? 

- Tu é bobo Fastanha? Como um morto poderia deixar o cemitério? Era maluco, doido, mas morto não. Descobriu-se mais tarde, quando veio o comissário e dois brigadianos, que se tratava de um foragido de Porto Alegre. Era jurado de morte pelas tais facções dos presídios, as gangues, isso que falam na televisão. E o cuera veio se esconder nesses pagos e achou aquele velho cemitério abandonado. Ali, por certo, ninguém ia encontrá-lo. 

Quando o fotógrafo e intelectual Paulo Asdrúbal chegou foi um alívio. Viu minha agonia e me tranquilizou: 

- Calma, Turíbio e Fastanha são dois parlapatões... 


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