O fogo da vida

O fogo da vida

Fogo é vida, por isso atrai e entristece. Às vezes penso na eternidade como uma gauchada ao redor de um grande fogo no chão

Correio do Povo

Fogo aceso há 200 anos, Fazenda Boqueirão São Sepé.

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Quando o fotógrafo Leonid Streliaev sugeriu que escrevesse sobre o fogo de chão de mais de 200 anos da Fazenda Boqueirão, em São Sepé, fiquei a pensar num tema. Poderia ser um ou outros tantos, talvez a nossa história, quem sabe as guerras, a tenacidade e a luta do nosso povo. Mas depois de assistir ao filme gaúcho “Aos olhos de Ernesto”, rodado numa rua vizinha à minha aqui na Cidade Baixa, me dei conta que só poderia falar de uma coisa: a vontade de viver. A veneração da vida deveria ser o maior e o melhor dos temas de todos os artistas, sejam eles populares, regionalistas, universalistas, urbanos, campeiros, que falem qualquer língua, morem em qualquer país, sejam eles jovens ou idosos, vindos de qualquer classe social. É só o que importa. O senhor e a senhora não concordam comigo? Passados alguns anos, não tenho mais nenhuma dúvida sobre isso, a maturidade vai dando segurança e ousadia para externar certas coisas que antes pareciam difíceis de admitir.

Sim, este fogo que nunca se extingue é um símbolo, uma imagem. Desde pequenos temos uma atração atávica pelas labaredas bailando por riba da madeira, levantando chispas. Quando guri, nosso tio Otacílio foi morar conosco. Era um homem velho, viúvo, com o único filho morando na Capital, onde o peão não queria morar, então aceitou o convite de meu pai. Havia perdido tudo o que tinha tentando plantar arroz, uma lavoura cara e traiçoeira, na qual se ganha muito ou se perde muito também. Foi morar no melhor galpão, que tinha uma varanda, onde fazia todos os dias o fogo de chão, esquentava o mate de manhã e à tarde. Por vezes ficava horas sentado num cepo, mateando, olhando para um foguinho mixe, como ele, humilde, simples, quase virando cinzas. Eu também olhava para o velho e para o fogo e sentia pena da sua vida que se acabava como aquele borralho tão pequeno. 

Ah, o fogo de chão esteve e sempre estará ligado às nossas estâncias legendárias, várias delas hoje divididas, transformadas em granjas produtoras de soja, principalmente na Metade Norte do Estado. Não só nelas, mas também nas chácaras, nos sítios, nos churrascos de fim de semana, nas casas das periferias dos pequenos municípios. Por toda parte. O fogo exerce uma atração milenar, o homem mudou sua vida no mundo desde o seu aparecimento. Aqui, num estado agropastoril, isso não poderia ser diferente. O fogo serviu nas guerras, no trabalho, no cotidiano, para marcar o gado, para assar a carne e assim segue através dos anos. Como é lindo ver a indiada reunida ao redor de um assado num domingo iluminado.

Fogo é vida, por isso atrai e enternece. Às vezes, penso na eternidade como uma gauchada ao redor de um grande fogo de chão. Meus sonhos loucos de reencontrar os amigos perdidos, fazer tudo o que sempre gostei ao lado deles, das pessoas que amei de todo o meu coração. Penso, ainda, que essas “Campereadas” são como o fogo de São Sepé, como o fogo da Boitatá, a cobra de fogo dos campos e das mangueiras, como a fumaça que sobe das chaminés nesses ranchos beira de estrada. Ficarão para sempre flamejando no coração dos que vierem depois de nós. Ardendo como as brasas desses fogões campeiros que nunca se apagam, como a história, como a vida, como o sonho e a esperança de todos os gaúchos.


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