O Zé não ficou sem gaita

O Zé não ficou sem gaita

publicidade

Escondida pela poeira/ Qual traste sem serventia / Num canto da prateleira / Jaz a gaita do Tobias ... / Com silêncios por dentro / E vazia de melodias / Sem quem folheie seus foles / Virou uma mercadoria .../ - Parece um livro fechado / Feito a alma do Tobias. (Silvio Aymone Genro)

Dia desses ao me deparar com este belíssimo tema do poeta Silvio Genro, um de nossos grandes compositores da Fronteira, me veio na cabeça a distante lembrança de um episódio do tempo que era bolicheiro lá na Vila Rica. Foi um fato marcante e do qual muito me orgulho. Porque na vida a gente faz tantas burradas que quando temos um momento magnânimo temos mesmo que comemorar e recordar. Foi assim: O Zé da Gaita chegou no bolicho numa sexta-feira à tarde com o seu carrinho de mão, cheio de sabão, a gaita e uns pacotes com suas décimas. O Zé era um artista por natureza, tocava magistralmente e era um ótimo poeta (compunha inúmeras décimas sobre fatos históricos) mas não podia viver somente de sua arte para sustentar a família. Então criou uma fábrica caseira de sabão e vendia diretamente nas casas esse rústico produto.

Ocorre que num ano de seca a safra foi ruim, os pecuaristas não venderam gado a Vila Rica ficou sem dinheiro. O Zé também acabou sendo afetado pela crise, pois ninguém comprou décimas e nenhuma barra de sabão. Sem dinheiro para pagar a conta do bolicho lá de casa onde fazia o rancho, o Zé tentou negociar o pagamento de suas dívidas entregando a gaita. Minha mãe, no princípio relutou, mas depois acabou cedendo e a caixa de madeira com a gaita dentro ficou sobre um canto do balcão. Eu vi o Zé da Gaita saindo, pegando o carrinho e o empurrando estrada a fora, acabrunhado. Quando passou por mim, que na época era apenas um piá, tive a impressão que os olhos do Zé estava molhados, mas pensei que pudesse ser da poeira dos caminhos.

Naquela noite, depois que fechamos a porta da venda e sentamos na mesa para jantar, ficamos conversando sobre o fato. Meu irmão estava empolgado com o fato de ter uma gaita em casa. O pai e a mãe estavam quietos, pensativos. Então tomei coragem e disse: "Mãe, fiquei muito triste em ver o seu Zé sem a gaita dele. O que ele vai fazer agora, coitado, ele que adora tocar. E a gaita vai ficar aqui fechada, sem ter ninguém que a toque. Não é justo, mãe, vai que venha alguém com dinheiro e compre a gaita só para deixá-la num canto qualquer. Acho que temos que devolvê-la para o seu Zé". A mãe concordou com a cabeça e olhou para o pai. Então o pai, que ainda não tinha falado, disse. "Amanhã de manhã pega o Tostado, vá na casa dele e diga para vir buscar a gaita de volta."

Nunca esqueço aquele sábado ensolarado em que o Zé chegou faceiro e sorriu ao ver a gaita. Então abriu a maleta, colocou a cordeona sobre as pernas e sapecou "Tordilho Negro", do Teixeirinha. Ficamos a escutar, embevecidos, maravilhados com a melodia que brotava dos foles. No final, batemos palmas e o Zé da Gaita seguiu pela estrada com a gaita dentro do carrinho. E assim, aquele lindo instrumento nunca mais ficou fechado sobre um balcão de bolicho. Porque a música é arte e serve para encantar, e dinheiro até agora ainda não vi dar felicidade a ninguém...

Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895