Os meus doces roubados

Os meus doces roubados

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Não tenho certeza, mas parece-me que, antigamente, as férias de verão eram mais longas do que agora. No início de dezembro (quem não pegava recuperação) a gente saía de férias e só voltava em março. No total, era mais ou menos três meses de uma folga relativa, para quem, como eu, vivia no campo. Sem o compromisso do colégio, podíamos ajudar mais em casa, é claro, mas também havia sempre a possibilidade de se aproveitar as sangas, as pequenas pescarias, o jogo de bola ao lado das taquareiras, andar a cavalo com calma (Como dizia o velho Sampaio, devagar como quem dança cagado), curtir as noites quentes e enluaradas debaixo dos cinamomos ouvindo causos de assombração. Meu tio Carrapicho era um exímio contador, espichava, esmiuçava (aumentando uma coisa aqui e ali) e nós, a gurizada, com os olhos bem abertos ouvindo tudo. Amedrontados, acordávamos no meio da madrugada ensopados de suor.

Foi na Vila Rica, agora tão longe no tempo e espaço, quando compunha frases que se vinham apressadas, antes de mim. Eram os primeiros desassombros que só sobraram borrões nos meus cadernos de colégio. Era o pátio onde ainda perguntam por mim, mas já era um desfigurado que à noite enxergava pirilampos imitando estrelas.  Os dias longos antecediam noites de grandezas miúdas. Hoje, as férias são curtas e os jovens as passam sem alteração, competindo consigo mesmo em jogos eletrônicos, comunicando-se numa linguagem de sinais em tablets e celulares. Sinto que  são rápidos para muitas coisas e lerdos para outras, talvez mais importantes. Ignoram sabores, coisas e jeitos que se perderam pelos desvãos da história. Não veem mais marandovás andando como gaitas pelas telhas nem os velhos bancos lesmados de tempo.

Ah, e havia os serões com as tias fazendo doces na cozinha. Daquele negro tacho de cobre sobre o fogão à lenha evaporavam cheiros tão doces como jamais experimentei. O que jogavam dentro dele aquelas doceiras encantadas, quais eram as especiarias que segredavam? Mexiam por horas com colheres de pau e cabos longos, colocavam mais isso e aquilo, provavam centenas de vezes e, por fim, davam por prontos. As massas ainda molengas iam para dentro de caixetas de madeira, forradas com plástico. Depois, tapadas com finas tábuas e lacradas. Eu e meu irmão nos atracávamos a comer os restos do que ficava nas colheres, sobre o fogão, dentro do tacho. Não me esqueço. Talvez por isso minhas férias de verão eram tão doces e inesquecíveis. As tias também eram doces conosco, mulheres de alma reta, alegres e que cantavam enquanto trabalhavam. Solteironas e sem filhos, nos enchiam de mimos, sempre guardando em alguns potes alguma prova para nós. Meus doces preferidos eram as rapaduras de leite, as ambrosias, as peradas e as figadas. Mas elas aproveitavam tudo o que tinham à mão, laranja, pêssego, pitanga, amora e abacaxi. Além das abóboras e das morangas, que faziam carameladas. Alguns produtos a mãe expunha nas prateleiras do bolicho e vendia como quitutes para a gauchada campeira.

Senhores, desgarrado aqui na Capital, lambo minha mão e sinto doçura nenhuma. Apenas o salobro da saudade. Esses anos todos me roubaram os prazeres que eu tive. Sou só um guri de calça curta que chora e arrasta alpargatas barbudas pelo assoalho carcomido da vida.

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