Para todos os que se foram

Para todos os que se foram

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                  Habita pelos meus internos uma ferida aberta que nunca cicatriza. Ao contrário, só aumenta de tamanho, sangra, grita e atormenta. Ela dói demais por ser invisível, por ter tratamento desconhecido. É a saudade dos que se foram, partiram por outro caminho e nunca mais voltaram. Ficou um vazio imenso, um silêncio atordoante do nada, a tristeza infinda que aterra e aterroriza. Ah, meu Deus, porque tem que ser assim, porque todos eles tiveram que ir, muitos tão cedo, tão jovens, tão cheios de vida. Sei que morri um pouco com cada um deles, algo em mim se desmontou, um pouco aqui, outro lá, e hoje sou um homem aos pedaços. Nem sei se sou eu mesmo ou apenas o que sobrou de mim.

Velo por vós, todos os que se foram. Mateio por um que era madrugueiro e mateador. Transgrido por aquele parceiro de protestos juvenis, escrevo rimas por um outro que esgrimia o gesto e a erudição do verbo, da frase bendita, faço milongas para o venta rasgada que vivia com a guitarra no colo compondo coplas ao vento. Às vezes me paro a rezar com os dedos entrelaçados uma prece xucra para uma que era devota da Virgem. Chumisco, eu até canto só para lembrar aquele amigo, canário teatino das manhãs domingueiras, que soltava a voz pelas felpas das coxilhas em ondas de luz e sonoridades campeiras. Eu faço tanta coisa inspirado nessa gente que me deixou, povo que montou pela última vez num pingo baio e seguiu sempre em frente atravessando a encruzilhada celestial, sem jamais olhar para trás. Velhos de barbas brancas, senhoras com canseiras no olhar de lonjuras e horizontes, rapazes e moças vestidos de alvorada no esplendor de suas virtudes e forças e até guris e gurias pequenos ainda, anjinhos de rostos lívidos de sereno. Eu juro, lembro de cada um deles e me pergunto se era mesmo necessário.

Tantos pobres que nem mesmo conheci, mas também se bandearam, a lo largo, estrada fora, batendo casco, rolando nos escuros das furnas do tempo, se perdendo para sempre debaixo do chão de onde vieram. Eu peço todos os dias para que o Patrão celestial se apiede dessa minha gente, amigos, parentes, conhecidos e todos os outros. Que dê-lhes um cantinho, que ganhem a luz nessas dimensões para onde se mudaram. Eles merecem, viventes tão trabalhadores e honestos, simples e rudes, que viveram como puderam, enrolados em suas pobrezas. Enquanto aqui estiveram nunca reclamaram de nada e ainda bendiziam pela graça de viver. E, meu bom Deus, perdoe até aqueles que se desviaram do caminho, pois certamente muito sofreram por isso.

Quando chegar a minha hora, quero estar pronto, desapegado dessas insignificâncias que ajuntei pelas estradas . Irei resoluto, a pé ou a cavalo, e quero então rever todos os que amei. Sonho encontrá-los lá, ao redor de um fogo de chão, churrasqueando e mateando, juntos e entreverados. Enquanto isso não acontece, tranço couro e palavras e pergunto à poesia quais são seus planos para a minha dor...

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Correio do Povo
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