Pela neblina do tempo

Pela neblina do tempo

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Para além do tempo, das coisas idas, vividas e passadas, estão nossas recordações perdidas e as incertezas. Como esses dias que nascem em meio ao chuvisqueiro, recortados pela neblina, envoltos em brumas e saudades daquelas coisas que a gente só tem um certeza: jamais voltarão. Ou então ressurgem como agora, uma fotografia sem nitidez, apenas o vulto das imagens fantasmagóricas no horizonte. Existe um tempo em nossas vidas que as cercas, os animais, as bicicletas que passam pelas ruas e estradas perdem o foco, parece que a retina fica recoberta por uma fina membrana que nos impede de enxergar. Isso nos angustia, nos aprisiona numa rede invisível, num lugar onde caminhamos ao redor de nós mesmos, como potros que correm dentro do mangueirão redondo ou touros trancados num cercado de pedra.

Voltei esses dias à minha querida Vila Rica e nada mais vi. Minto, vi muitas coisas, mas nada daquilo que gostaria de ver outra vez. Não vi meus amigos jogando bolita debaixo das figueiras, não vi o gado charolês branqueando as coxilhas esverdeadas, não vi o nosso bolicho com o balcão de tábuas riscadas pelo fio das facas, nem a balança bico de pato; não vi minha mãe fazendo doce no tacho sobre o fogão a lenha; não vi tropas cruzando a estrada rumo à charqueada, nem a gritaria dos gaúchos montados em seus pingos garbosos e suados. Não vi os cinamomos, os ciprestes, a cancha de bocha, o alarido da escolinha do São João, nem a fuzarca dos madrugadores. Não vi pitangas maduras. Onde estará meu irmão, parceiro e amigo de brincadeiras e caçadas? Não encontrei meu cavalo Tostado, um companheiro para dias ensolarados de infância e carroceadas. Nada disso vi ou ouvi porque dormem na memória. Coisas e gente que foram atropeladas pelas mudanças dos novos tempos. Só vi espectros e senti um vazio pelos internos porque também não me vi lá. Constato, tristemente, que sou um velho que arrasta as chinelas, arcado, buscando coisas e pessoas que não existem mais. Só resisto porque sou teimoso e me salvo nas palavras.

Sei que devo aceitar a derrota, compreender o fluxo inexorável dos dias e das noites rodando. Meus amigos, sei disso, mas confesso que é dolorido. O passado se perdeu e agora só existe aqui dentro. Tem muito mais presença em mim o que me falta. O que passou, passou, passou.... Está perdido para sempre na neblina do tempo.

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