Pequenas confissões

Pequenas confissões

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                  Porque me fiz de barro e sanga sou assim mesmo, avesso aos luxos, pois me alimento de pequenezas, de fiapos de sonhos e de memória. Ando rodeado de terra, de árvores e de vento, charlando com borboletas e outros bichos. Prefiro admirar formigas, o voo das abelhas e escutar cigarras. Aprecio o olho no olho, fujo dos elogios fáceis e das ironias. Prefiro a língua direita, a crítica nua, pura e sincera, a honestidade da verdade, mesmo que a palavra corte como carneadeira. Entre botas e sapatos, fico descalço. Entre o avião e o carro importado, cavalgo matungos. Assobio carretas e seus eixos cantadores. Entre a algazarra das ruas e o barulho da noite escondo-me nos mistérios do silêncio. Escuto vozes de pedregulhos, de plantas que gritam aos que sabem ouvir pétalas e seivas. Encomprido caminhos e redesenho nuvens. Acaricio galhos que andorinham cantos distantes. Por ser assim não corro, me enfeito de flores sem nome, atolo os pés nos lamaçais das várzeas, sujando a pele para limpar as tripas, as veias, os nervos e a ossada.

Caminho pelas ruas e os cheiros me lembram o feijão cozinhando na chapa do fogão à lenha da nossa cozinha, da vassoura de carqueja atrás da porta, do calendário pendurado na parede, aquelas imagens do Berega que a Ipiranga entregava nos finais de ano. Do pano de prato sobre a tampa do fogão com o bordado "Lar feliz", do chuveiro de roldana, da mesa posta debaixo dos cinamomos, dos programas de rádios com avisos de gente que precisava falar com alguém que andava changueando pelas fazendas, das notificações de nascimento, dos homens ilustres que morriam. Fatos corriqueiros que viravam acontecimentos. Nos invernos, escutávamos o futebol pela Guaíba num antigo rádio Phillips à pilha ao redor de um fogo de chão, de um fogareiro a carvão. Sem sorvete, nossos doces eram as pitangas maduras atrás do açude. Tudo simples, como a vida deve ser, calma e reta, sem ressentimentos, apenas vontades, sentimentos, respeito, educação e conhecimento.

Com fome de palavras folheava o velho Correio do Povo e a antiga cartilha "Vamos Sorrir" e neles aprendi a ler. Depois, já taludo, subi num trem e vim parar aqui, onde fiz morada. Mas este coração interiorano bate pelos humildes, pelas simplicidades, pelos que andam solitos nos corredores do Pampa ou nas ruelas escuras das cidades. Bate porque se reconhece nessa gente. Meu coração palpita pelas singelezas, porque as coisas que o faz feliz estão tão perto que o dono pode alcançá-las com a mão. Este coração campeiro sabe que está no chão a origem do voo...

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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895