Sol do Sul da alma

Sol do Sul da alma

Quero a lentidão daquele entardecer, dos dias bolicheiros e alegres, de um sol colorado que adormeça neste coração campesino

Paulo Mendes

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Um guri corre pela estrada de terra empurrando com um arame retorcido uma argola de ferro. Ao lado do velho alambrado, de moirões e tramas apodrecidas, uma antiga placa de refrigerante que nem se vende mais nas lancherias e bares. À direita, um açude onde nadam patos e marrecos, com um bando de andorinhas voando por riba, com a líder delas alçando um trajeto mais alto em direção aos caponetes de eucaliptos, ao longe. Para a esquerda, as lavouras verdejantes a se perder de vista, vez por outra, vacas leiteiras reunidas em potreiros. Lá, bem na frente, um campeiro genuíno, montado num cavalo mouro, arreios gastos só com freio e rédeas, sem buçal ou laço. Um homem simples, desses que não bailam em CTGs, que passa a vida a trabalhar, de sol a sol, sem domingo ou dia santo. Hay muitos nesses corredores. 

Depois, na encruzilhada, uma chácara, uma casinha branca de onde uma fumaça cinza alcança os céus se perde por detrás da restinga. Quem estará dentro daquele humilde lar, será que uma alma apaixonada que prepara a comida para o amado que há dias está longe de casa, num compromisso? Ou um paisano desprezado que ficou solito porque a vida não o deixou encontrar sua cara-metade, um desses que hoje andam cabisbaixos, que preparam a erva para matear solitos. Ah, meus amigos e minhas amigas, queridos leitores, andei solitário por muito tempo por esses caminhos do Pampa e sei como é chegar em casa, depois de muitos dias e não ter nem um cusco para latir para alegar nossa alma enregelada. Não enxergar na janela a prenda com uma flor no cabelo e um sorriso largo como clarão de alvorada. Quando se abre a porta e tudo está vazio, como o nosso peito tapera. 

Falo assim porque vi e vivi nessas estradas de chão batido por muito tempo. Por isso aqui enalteço os esquecidos, os que ganham o pãozinho de cada dia debaixo de muita luta e trabalho. Abro a janela e parece que enxergo o sol de outubro se deitar para os lados dos correntinos, ensanguentado, coloreando o mundo, pintando a paisagem de um mais um fim de dia. E assim, minha gente, galopam as horas, os dias, os meses, os anos, as décadas e os séculos. Tudo vai mudando, uns morrendo, como essa tarde, e outros nascendo, como sol de amanhã. Tudo segue como a sanga que vai sempre em frente, para dar no riacho, que vira rio e depois o mar, aquela eternidade de água e tempo. E nós vamos envelhecendo, lentamente, como essa paisagem que definha em fogo. 

Mas, não há de ser nada, como sempre dizia o velho Turíbio, enquanto tomava um trago oitavado no balcão: “Não tem nada nem que tenha, cavaco também é lenha”, brincava. A seguir, um gaiato arrematava: “E viúva também se emprenha”. “Chega”, gritava dona Mirica, minha mãe e bolicheira. “Tão borrachos.” E a vida seguia no ritmo lento, como tudo o resto, porque é mais devagar o tempo na campanha. Agora, depois de tantos atropelos, quero a lentidão daquele entardecer, dos dias bolicheiros e alegres, de um sol colorado que adormeça neste coração campesino e fique dentro dele. Um coração afetuoso e manso, louco de faceiro, recitando versos, bem missioneiro, bêbado de luz e sendo guri de novo, empurrando aro de ferro na estrada, sonhando em ser feliz. 


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