Tropilhas da madrugada

Tropilhas da madrugada

publicidade

         Elas vêm sempre nessas madrugadas de julho, entrecortadas  de sonhos e de saudades. São tropilhas que povoam a memória de um tempo que foi lindo, mas já perdido. Ficaram as recordações e o peso do tempo nas quebraduras, no corpo cansado. Sobraram cicatrizes abertas, mágoas e agora, chumisco, o ginete agoniza solito num rancho de fim de mundo, tendo apenas por companheiros o perro Salino e o mouro cabano e anca de vaca.  O guasca que já foi campeiro de lei acorda de sobressalto com dores na perna quebrada, na costela mal emendada. Ah, mas que ventito mais furioso que este inverno maleva manda  para o Rincão do Durasnal, que de doce só tem o nome. Parece que o vento quer castigar ainda mais o corpo retaco de Felício Neves de Campos, o Chico Petiço. Quando moço, era domador de renome por toda a costa do Jacuí, da várzea do Toropi e até para os lados da Fronteira. Foi um gaúcho entonado, com uma adaga prateada na cintura, o chapéu tapeado na testa e o olhar altivo, nem parece este de agora, um par de bolitas de vidro mirando o vazio.

         Remexe no fogo e as labaredas soltam chispas que lá no alto parecem imitar as estrelas. Depois volta a se deitar coberto pelo poncho repleto de furos, com os pelegos de carnais curtidos, já de há muito longe dos bastos. E a cavalhada retorna. São os fletes que domou, voltam para se reconciliar dos tironaços, a alma deles. Porém não param, passam num galope louco em disparada,  e somem na distância, no horizonte que é longe e perto. Depois passam voando os cabrestos, os buçais, as rédeas, as cinchas, um cinchão, loros, estribos e maneias. Suas cordas eram tiradas, curtidas e trançadas pelo velho Maneca Machado, guasqueiro lá do Cerrito.

         Cruzam em tropel, levantando poeira da terra vermelha, com relinchos, escarceando, surgindo e sumindo. São potros, potrancas, éguas de cria, cavalos de arreio, colhudos pais de tropilha e até uns potrinhos recém-paridos.  Zainos, tostados, mouros, tobianos, e gateados. Depois um alazão passarinheiro, um tordilho desconfiado, um tostado coiceiro, um malacara sestroso, um baio frente aberta e um petiço sogueiro. Lá em meio da polvadeira, uma mula picaça, orelhuda, de venta vermelha e rasgada. Lembra de cada um desses animais.

         Eles passaram por sua vida ou foi ele que passou pela vida deles? Não sabe mais. Antes sabia de cor todas as respostas, mas de uns tempos para cá a vida, por ladina,  resolveu mudar constantemente as perguntas...

Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895