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Conversa de Carro: carro chinês, sem laço emocional

Tecnologia é a aposta dos asiáticos, contra o poder das marcas ocidentais

Recorde de velocidade empurrado pela eletricidade
Recorde de velocidade empurrado pela eletricidade Foto : BYD / Divulgação CP

A inauguração da unidade industrial da BYD em Camaçari é um passo importante para a consolidação da marca no mercado brasileiro. No entanto, o sucesso inicial dos chineses não significa que as marcas chinesas tenham relação significativa com os brasileiros. Como tem a Volkswagen e outras marcas que participaram do processo de “motorização” do Brasil com carros icônicos como o “Fusca”, Gol, Chevette, Fiesta e tantos outros.
A conexão com “corações e mentes” para a indústria automobilística é um longo processo, onde a “mitologia” gerada pela marca pode vir através de vitórias nas pistas.
Se os pilotos da Ferrari nos anos trinta eram heróis que sacrificavam suas vidas para ganhar décimos de segundos numa curva desafiadora, venciam ou morriam. Mas isso ampliava o mito Ferrari. Morrer numa pista era algo tão heróico como morrer numa batalha nas tropas de Napoleão.

Se as “flechas” prateadas rodavam a mais de trezentos por hora no circuito de Avus, em Berlim, nos anos trinta, então os alemães pensavam que a Mercedes-Benz era superior naquele momento histórico. Seria também no futuro.
E assim as marcas automobilísticas criaram diferenciais tecnológicos e sociais e estreitaram laços com as gerações futuras. Hoje o cidadão alemão coloca seu carro para rodar no mítico autódromo de Nürburgring, pagando caro por isso. Na mente e coração do cidadão vai junto a absurda precisão na pilotagem de Schumacher — que nunca devia ter trocado o “acelerador” pelo esqui.
O cidadão alemão do presente se conecta em Nürburgring a um passado glorioso que está no inconsciente coletivo da Alemanha. O mito Mercedes-Benz depende desse mecanismo psicossocial.

No humilde Brasil, a construção de laços afetivos com marcas automobilísticas partiu da humildade do uso e da prática. Dirigindo um “Fusca”, o brasileiro não venceria provas em circuitos internacionais. Seria, no máximo, o piloto famoso do bairro, sujeito a “gozações”. Sem nenhuma glória, a não ser o acordar de manhã para ir trabalhar com o “Fusca”, que não podia falhar, pois isso poderia significar a perda do emprego.

Em processos midiáticos mais avançados, com o advento da televisão, as provas da Fórmula 1 geraram a popularidade inicial de Emerson e Piquet — sem desmerecer pilotos espetaculares que ficaram restritos à fama regional.
Mas ninguém comprava um carro por causa das vitórias de Emerson e Piquet. No máximo, compraria aqueles óculos que deixavam Emerson com cara de formiga gigante.
Os óculos realçavam o nariz grande, e “Rato” era seu apelido.
Mas pilotos ou mesmo artistas conhecidos não provocavam a ligação afetiva dos brasileiros com seus carros. Essa conexão era gerada no ambiente familiar, já que os filhos se iniciariam com o “Fusca” do pai, do tio. O Fusca — aquele primeiro amor, sem grandes atrativos, mas fundamental na formação do motorista.
A indústria automobilística brasileira evoluía lentamente na tecnologia e era limitada pelo baixo poder aquisitivo do país. Daí o poder midiático e publicitário do slogan: “Você conhece, você confia.”
Então os laços afetivos entre brasileiros e seus carros nada tiveram de heróico ou planejado. Foi algo prosaico, até simplório — das relações entre pessoas e seus mecânicos preferidos.
Em vez da foto garbosa de Enzo Ferrari em todas as padarias de Módena, a foto de “mulher pelada” tradicional nas oficinas do Brasil.
Os mecânicos brasileiros sempre tiveram bom gosto em suas “folhinhas”.
Os laços afetivos também se solidificavam na cozinha da casa colada à oficina mecânica. Enquanto esperava o carro ser consertado, o “cliente” tomava um café quente e comia um pedaço de bolo na casa do mecânico. Eram amigos.
A publicidade brasileira até hoje salienta esses laços afetivos entre carros e pessoas.
Percorra os bairros de periferia do Brasil e encontre os “velhos” mecânicos que ainda não deixam Chevettes, Opalas, Fuscas e “Miuras” morrerem. Os carros velhos ganham tratamento digno e “voltam à batalha” diária.

Portanto, a fidelidade a uma marca — ou ao menos a simpatia por ela — foi gerada na simplicidade das relações humanas. Se os carros eram resistentes, representavam economia familiar.
No Brasil, tantas vezes o “pai” se transformava em mecânico para contribuir com a economia doméstica.
Também a mecânica simples e robusta do Gol ou Palio facilitava a manutenção e gerava economia.
O automóvel como “membro da família” — um sentimento que persiste nas novas gerações.
Reparem que muitas garagens em edifícios sofisticados são transformadas em “lounges” e o carro passa a ser objeto de “decoração”.
Enfim, há muita afetividade na relação com o automóvel no Brasil — para o bem e para o mal.
Já que essa afetividade não significa ter um trânsito seguro, e tantas famílias morrem em acidentes brutais.

Mas a publicidade direcionada ao tempo passado com o veículo serve como poderoso vínculo emocional com a marca.
Na festa em São Paulo dos setenta anos da Volkswagen, a Kombi elétrica ID.Buzz era lançada no Brasil.
Surgia a cantora Elis Regina ao volante da antiga Kombi ao som de “Como Nossos Pais” — música emblemática de uma era de mudanças sociais e geracionais dos anos sessenta.
Elis Regina, recriada pela inteligência artificial, cantava com sua filha, que dirigia outra Kombi.
O comercial fez centenas de pessoas chorarem no Ginásio de Esportes do Ibirapuera. Chorei muito.
O comercial genial sintetizou o afeto do brasileiro por Elis Regina, pela Kombi e pela Volkswagen.

Mas o automóvel não vive mais em tempo afetivo.
Foi reduzido a “commodity”. É somente uma mercadoria.
O conceito do automóvel é próprio dos chineses, que cada vez mais dominam o mundo do automóvel.
No cenário pré-apocalíptico de um mundo disruptivo, a chinesa BYD sintetiza esta nova era do automóvel — um novo tempo em que o consumidor dificilmente terá motivos para ser afetivo.
Os comerciais dos carros chineses são nervosos e levam o consumidor para uma realidade paralela, onde a tecnologia permeia e submete a consciência humana.
As chinesas evitam citações passadistas e emocionais. Soariam falsas.
A BYD nada sabe do Brasil — e não precisa. Na China, a indústria automobilística não teve história, e sua trajetória é curta. O primeiro carro elétrico com produção em massa foi o BYD e6, lançado em 2009.
Se comparada à trajetória dos carros a combustão ocidentais, os chineses estão cem anos atrasados.
Na tecnologia, estão à frente. A trajetória centenária foi tempo suficiente para que o consumidor ocidental criasse parcerias com marcas famosas.

Os pragmáticos chineses contratam executivos que, nos países em que atuam, nem eram ligados ao mundo do automóvel. Isso não importa, porque os carros chineses são “chips” que se movem. São veículos que têm setenta por cento menos componentes mecânicos que os carros a combustão.
A falta de vínculos e laços emocionais com consumidores é compensada pela qualidade dinâmica de muitos modelos. E poderia gerar um novo slogan publicitário da BYD: “Você não me conhece, mas você confia.”
A confiança vem da tecnologia sofisticada de produção das montadoras chinesas. São bilhões de dólares investidos também em publicidade e marketing, que geram muito mais elogios do que críticas aos produtos chineses. Ao estilo de país autoritário, os chineses não gostam de ser criticados — e excluem profissionais de imprensa “indesejados”.
Mas o governo também promove “expurgos” internos, com graves punições para os “contestadores” do regime. Uma postura totalitária que deve ser modificada à medida que a China se torna a medida de sucesso para qualquer país que deseja progresso material.
Não fosse assim, os chineses não teriam as facilidades que têm para instalar suas fábricas pelo mundo.
As montadoras chinesas estão prestes a se tornarem as líderes absolutas do mercado brasileiro. É uma presença avassaladora que modifica a relação do consumidor com a oferta.
Os veículos chineses são muito eficientes. Mas são sedutores? Nem tanto, já que os chineses ainda não atingiram a maturidade na forma. O design de muitos veículos é sofrível — por exemplo, nas picapes da JAC, BYD ou GWM. No mínimo, exageradas.
Os chineses, porém, não perdem tempo: a Geely se associa à Renault, inicialmente para distribuição dos Geely, e posteriormente para produção dos modelos no Brasil. Os chineses provocam mudanças profundas no mercado automobilístico brasileiro.
Por exemplo, a crescente diversificação de marcas e modelos, que deve ter a contrapartida da produção local — algo difícil de ser cumprido devido à complexidade da cadeia global de suprimentos.
A excessiva diversidade da indústria automobilística chinesa também gera uma crise no mercado interno devido à guerra de preços entre montadoras.

As análises de grandes consultorias econômicas, como a JD Power, demonstram que a China deve reduzir drasticamente o número de montadoras se quiser a sobrevivência de sua indústria automobilística.
Algumas ganharam sobrevida, como a pequena Leap Motors, que se abrigou no amplo guarda-chuva do Stellantis — hoje com muitos furos.
O Stellantis tem perda financeira pesada no mercado norte-americano.
Uma consequência positiva é a geração de novos centros de Pesquisa e Desenvolvimento em conjunto com empresas brasileiras.
Mas é inadmissível a produção de veículos em CKD ou SKD, com peças e conjuntos que chegam semi-prontos ao Brasil e aqui são finalizados.
Montar carros no Brasil é prejudicial porque afeta o emprego nas montadoras, que perderão mercado.
Chineses são vorazes.

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