Boate Kiss: A história da mesma noite

Boate Kiss: A história da mesma noite

Jornalista e escritora Daniela Arbex é autora do livro sobre a tragédia em Santa Maria

André Malinoski

Daniela Arbex, jornalista e escritora.

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A jornalista e escritora Daniela Arbex, autora do livro “Todo dia a mesma noite - A história não contada da Boate Kiss”, que trata da tragédia na casa noturna de Santa Maria, que vitimou 242 pessoas e deixou 636 feridos há quase nove anos, acompanha por alguns dias o julgamento dos réus no Foro Central, em Porto Alegre. A obra, que foi lançada pela editora Intrínseca em 2018, será adaptada para a televisão e vai virar uma minissérie documental na Netflix no próximo ano. Aos 48 anos, a mineira compartilha o que espera da justiça nesse tão aguardado júri.

O que você espera do julgamento?

Tenho falado sempre que justiça não é vingança. Mas é necessária uma reparação e uma resposta para a sociedade. Minha expectativa é que finalmente a gente consiga colocar um ponto final nessa cultura de impunidade que nos trouxe até aqui. Porque não é razoável que famílias esperem quase nove anos para que a justiça seja feita.

Como surgiu a ideia do livro sobre a tragédia da Boate Kiss?

A ideia do livro surgiu a partir de um colega de redação radialista que me disse que eu precisava contar essa história, porque eu já tinha escrito outras reportagens e o meu trabalho é de construção da memória coletiva do Brasil. E eu disse para ele que todo mundo já contou essa história. Mas ele insistiu comigo que eu precisava contar essa história. Fiquei pensando, “mas o que eu posso falar se tudo já foi falado sobre a boate?”. A partir dessa provocação, comecei a procurar o que os pais estavam falando nas redes sociais até que eu cheguei em uma mãe que respondeu a uma postagem de um sócio da boate. Ele disse assim: “Depois que aconteceu esse evento, eu nunca mais comemorei o meu aniversário”. E ela disse para ele: “A mãe da filha que foi comemorar o aniversário dela de 22 anos, com quatro amigas, e nenhuma delas voltou para casa”. A partir dessa resposta, eu vim para o Rio Grande do Sul e passei um tempo aqui, de 2016 até 2018. Fui 15 vezes a Santa Maria e entendi que eu podia contribuir de alguma forma com essa história. E acabei descobrindo que havia coisas que não tinham sido faladas. Por exemplo, os profissionais da área da saúde nunca tinham falado sobre o que viveram e como foi aquela noite e as noites seguintes. E então eu fui construindo “Todo dia a mesma noite”.

Quantas pessoas você entrevistou e o que destaca de mais importante?

Foram mais de 150 entrevistas e o livro tem mais de 100 personagens. Acho que várias coisas me impressionaram muito. Uma delas foi o fato de políticos terem entrado no ginásio onde os corpos estavam antes das famílias. Impressionou-me o fato de que assessores de políticos e pessoas ligadas a funerárias fotografaram os cadáveres das meninas e tiveram ordem de prisão decretada. Isso é uma coisa que me impressionou muito. Impressionou-me o fato de médicos que trabalhavam na emergência, muitos deles, depois terem abandonado a emergência, eles não conseguiram mais trabalhar nesse setor. As pessoas da área da saúde depois tiveram que pedir afastamento do trabalho em função disso. Impressionou o depoimento do coordenador dos bombeiros daquela noite de socorro, que, na minha opinião, é tão vítima quanto as vítimas, porque eles não tinham equipamento necessário, gente e infraestrutura. Nada para dar conta de uma coisa daquela dimensão. Então, isso me impressionou muito. Mas, ao longo do tempo, o que mais me marcou foi o adoecimento das famílias. Depois do livro, continuei acompanhando a rotina das famílias, faço parte de um grupo de apoio aos familiares e me impressiona esse adoecimento permanente e a desagregação familiar. Os casos em que essas pessoas perderam a condição de trabalho. Então, é exatamente isso. É como se eles tivessem ficado presos lá em 2013.

Como foi o convite da Netflix para transformar o livro em uma minissérie?

A primeira conversa que a gente teve foi em 2019. Fui convidada para ir ao escritório da Netflix para a adaptação das minhas obras, eles não sabiam quais livros. Fomos conversando até que a Morena Filmes me procurou interessada em transformar essa história em uma série. E então foi um grande encontro entre a Netflix, a Morena Filmes e o meu livro. E para a minha surpresa, a Netflix manteve o nome do livro na série. Acho isso muito emocionante, porque é um reconhecimento da importância desse livro. Também eles dão um passo importante nessa construção da memória coletiva no Brasil. Para que mais pessoas saibam o que aconteceu e se lembrem que a gente não pode esquecer. Porque esquecer é negar a história.


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