Marcelo Cypel: "O transplante pulmonar é uma terapia muito complexa"

Marcelo Cypel: "O transplante pulmonar é uma terapia muito complexa"

Médico gaúcho é diretor do programa de suporte pulmonar extracorpóreo da Universidade de Toronto, do Canadá, onde vive há 15 anos

Sidney de Jesus

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O médico gaúcho Marcelo Cypel, de 44 anos, é  referência internacional na recuperação e transplante de pulmões. Especialista em transplante de pulmão e cirurgia torácica, Cypel atualmente é diretor do programa de suporte pulmonar extracorpóreo da Universidade de Toronto, do Canadá, onde vive há 15 anos. Em Diálogos, conta um pouco da sua trajetória na medicina para salvar vidas. 

Correio do Povo: Ao longo dos anos, o senhor vem desenvolvendo um trabalho especial que o referencia no transplante de pulmões. A recuperação de um paciente com a Covid-19 passa exclusivamente pelo tratamento pulmonar?
Marcelo Cypel: Sim. Embora a Covid-19 possa atacar vários órgãos do nosso corpo, os pulmões são os órgãos mais afetados e a falência pulmonar é o que geralmente leva a morte nessa doença. Quando o pulmão está muito acometido, o tratamento passa por medidas de suporte como oxigênio, e o uso de corticóides e anticoagulantes. Nos casos mais graves, os pacientes precisam de ventilação mecânica e, em pacientes selecionados, o uso de maquina de oxigenação extracorpórea (ECMO ou pulmão artificial) em centros que dispõem dessa tecnologia.

CP: Quais as inovações no manejo da falência respiratória do transplante pulmonar em relação à Covid-19?
O transplante pulmonar é uma terapia muito complexa. É usado somente em casos muito selecionados, de pacientes geralmente jovens,  em que o pulmão não se recupera dos danos causados pela doença. Geralmente os pacientes após seis semanas em suporte pulmonar extracorpóreo, em que todos os outros órgãos estão funcionando adequadamente, com exceção do pulmão, podem ser avaliados para possibilidade de transplante. Entretanto, na realidade brasileira atual, onde os recursos hospitalares estão esgotados devido a gravidade da pandemia, a possibilidade desse tratamento se torna remota, já que os pacientes que precisam transplante pulmonar por outras causas, têm muito menos acesso.

Como o senhor avalia o uso do chamado suporte pulmonar extracorpóreo?
Essa e uma tecnologia fantástica que salva muitas vidas. Ela é usada quando nem a ventilação mecânica está sendo suficiente para manter o paciente vivo. Basicamente, é substituída a função pulmonar com esse sistema (similar ao que uma máquina de diálise faz na insuficiência renal), e ganha-se tempo para pulmão melhorar e retornar as suas funções. Entretanto, essa é uma tecnologia disponível em poucos lugares e precisa de equipe altamente treinada e especializada.

O senhor é o diretor do programa de suporte pulmonar extracorpóreo da Universidade de Toronto, no Canadá. Como funciona e qual o objetivo?
O nosso programa é referência no Canadá para pacientes com doenças respiratórias graves. Nós tratamos em torno de 120 pacientes por ano com suporte pulmonar extracorpóreo na UTI, tanto para casos de doenças agudas, como a Covid-19 ou Influenza, como uma ponte para recuperação. Também para doenças crônicas que eventualmente vão precisar de transplante pulmonar, como pacientes com fibrose pulmonar ou enfisema. O sistema público de saúde canadense permite a centralização de atividades médicas complexas em centros de excelência, o que torna os resultados mais favoráveis.

No Canadá, seu trabalho e estudos sobre a recuperação de pulmões para transplantes tiveram repercussão internacional. Que projetos o senhor desenvolveu? Quais resultados já foram alcançados?
Nós desenvolvemos um método e uma máquina que trata o pulmão após a retirada do doador, criando um órgão de melhor qualidade para o transplante. É como se o pulmão tivesse uma UTI só pra ele. Isso fez aumentar em 100% os nossos números de transplantes pulmonares nos últimos cinco anos, tornando Toronto o maior centro no mundo em transplante de pulmão. Esse método é atualmente utilizado internacionalmente em grande escala. Entre as terapias que desenvolvemos para ser utilizada nesse sistema, inclui o tratamento de infecções bacterianas e virais, remoção de coágulos nos vasos pulmonares e terapias que preparam o órgão para evitar rejeição.

Como o Canadá está enfrentando a pandemia? Qual a diferença em relação ao enfrentamento do coronavírus no Brasil?  
Em geral, o Canadá manejou muito bem a pandemia. Estamos atualmente com os números bem controlados e a vacinação avançando num ritmo bom. O número total de mortos desde o início da pandemia foi de 22 mil (numa população em torno de 40 milhões), e quase 80% dessas mortes foram em casas de idosos e nos chamados “long-term care”. Em geral, as UTIs nunca lotaram e nenhum paciente ficou desassistido, como tem acontecido em alta escala no Brasil, infelizmente. O Canadá tem um sistema de testagem muito robusto, então as medidas restritivas ocorreram quando os números na comunidade aumentaram, e antes de os hospitais lotarem.

O máximo de pacientes que a grande Toronto (que tem seis milhões de pessoas) teve em UTIs com a Covid-19 foram 220, no pico da segunda onda. Isso se compararmos com os 1.100 pacientes atualmente em Porto Alegre (mais outros esperando leitos), que tem uma população bem menor. A grande diferença em relação ao Brasil está na comunicação uniforme dos governantes a nível nacional, das províncias e das cidades sobre a seriedade da pandemia, e na execução de medidas não farmacológicas de controle.

Obviamente outras diferenças culturais também tiveram peso. Fora isso, os tratamentos aqui sempre seguiram o norte da ciência e não foram politizados. Aqui nunca se usou essas medicações do Kit Covid do Brasil, e o número de mortos é imensamente menor, sobretudo na população abaixo de 65 anos.

Como foi  poder ajudar no tratamento dos feridos do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria? Auxiliar os sobreviventes da tragédia contibuiu de alguma forma para avanços nos estudos para o tratamento pulmonar?
Na época do incêndio da boate Kiss, o nosso grupo em Toronto já tinha bastante experiência com uso de suporte pulmonar extracorpóreo, mas era uma novidade ainda para as equipes gaúchas. Entretanto, acho que esse foi um momento chave para alguns centros gaúchos alavancarem o uso dessa tecnologia que já salvou muitas vidas após 2013. Nós continuamos a colaboração nessa área com a excelente equipe do ECMO do HCPA.

O que representa ser premiado pela Academia Sul Rio-Grandense de Medicina por seu trabalho especial no transplante de pulmões?
Essa é provavelmente a maior honra da minha carreira acadêmica. 

Pretende voltar ao Brasil? Por enquanto os planos são de ficar aqui. Nós vamos ao Brasil todo ano pra visitar a família e amigos. 


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