Michel Maffesoli: "Nem Emmanuel Macron nem Marine Le Pen estão sintonizados com o povo"

Michel Maffesoli: "Nem Emmanuel Macron nem Marine Le Pen estão sintonizados com o povo"

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maxresdefault (1) Foto: YouTube / Reprodução / CP


Professor emérito da Sorbonne, nascido em 1944, o francês Michel Maffesoli é hoje o grande teórico da pós-modernidade. Autor de mais de 30 livros, entre os quais ‘‘O Tempo das Tribos’’, ‘‘A Transfiguração do Político’’, “O Conhecimento Comum’’ e o ‘‘Conformismo dos Intelectuais”, defende que os valores da modernidade (racionalismo, individualismo e culto do progresso) não mobilizam mais as pessoas, tendo sido substituídos no cotidiano por uma sensibilidade aberta a diferenças e relativizações (razão sensível, tribalismo e progressividade). Para ele, a ecologia, politizada ou partidarizada, perdeu espaço para a ecosofia, tema do seu último livro, ainda não publicado no Brasil, uma concepção filosófica existencial baseada num retorno à natureza e aos parâmetros humanos da convivência, da vibração em comum, dos pés no chão, do lúdico, da amizade e do compartilhamento de coisas e ideias. Maffesoli esteve em Porto Alegre para falar sobre ‘‘Ecosofia, comunhão digital e imaginário social’’ no Grupo de Tecnologias do Imaginário (GTI) do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Famecos/PUCRS.
Antes de uma picanha no Barranco, regada com caipirinhas de cachaça, concedeu entrevista exclusiva ao Correio do Povo na qual analisa também a eleição presidencial francesa deste domingo. Num tempo de dicotomias e radicalizações, o sociólogo percebe nuanças escondidas e destaca o papel da potência social corroendo o poder institucional. Por trás do desencanto com a estrutura partidária tradicional corre, segundo ele, uma energia renovadora ainda em gestação. Estão servidos? Como se diz, quem quer enxergar novidades precisa trocar as lentes, sair de casa, mudar o software e sujar as mãos com o mundo real. Michel Maffesoli enfrenta os discursos acadêmicos e midiáticos de bom tom e o conformismo politicamente correto dos intelectuais poderosos.


Correio do Povo: Por que passar da ecologia  à ecosofia?
Michel Maffesoli: Antes de tudo por uma questão de precisão. Dou muito importância ao que os termos significam. Penso que na raiz das palavras, em sua etimologia, podemos encontrar janelas para o entendimento de sentidos mais profundos. É sempre um bom ponto de partida. Além disso, precisamos ver as coisas em perspectiva, na relação estabelecida com outros termos. A ecologia, ao menos na Europa, foi tomando uma perspectiva política excessiva, assumindo um ponto de vista demasiadamente racionalista. O que me interessa, no entanto, é a sensibilidade popular. Ecosofia, no sentido etimológico dessa palavra, significa a sabedoria em relação à casa compartilhada, o cuidado com a natureza que é o nosso lar comum. Não podemos mais devastar essa casa onde habitamos e que temos explorado ruinosamente.

CP: Como compreender a ecosofia  no cotidiano?
Michel Maffesoli: Dessa maneira bastante simples: retorno à natureza. Durante séculos na tradição ocidental existiu uma desconfiança em relação à matéria, ao corpo, à natureza. Isso culminou nos séculos XVIII e XIX num afastamento entre o homem e o seu habitat. Gilbert Durand, meu mestre, autor de “As Estruturas Antropológicas do Imaginário’’, falou em princípio de separação, de corte, de ruptura: distância entre corpo e espírito, natureza e cultura e assim por diante. Para mim, atualmente, superamos essa divisão. Voltamos ao natural. Já não pensamos que seja possível dominar ou controlar a natureza. Sabemos agora que a nossa relação com a natureza é de mão dupla, de feedback, de vaivém, de reversibilidade, ação e retroação como diz Edgar Morin. Ou seja, temos um retorno ao naturalismo.

CP: A ecologia era a modernidade? A ecosofia é o pós-moderno?
Michel Maffesoli: Penso que sim. Cabe, porém, salientar que nem todo ecologista atua com uma perspectiva político-partidária ou meramente instrumental. Mas, de maneira geral, a ecologia ainda é racionalista, progressista, voltada para o futuro, escorada nessa velha ideia cartesiana segundo a qual o homem é senhor da natureza. No meu livro falo em sensibilidade ecosófica, ou seja, um sentimento, uma atmosfera, algo que está difundido no cotidiano. Um sentimento, no caso da França, popular, compartilhado pelo povo. Não se pode mais, insisto, dominar a natureza. Disso decorre outra relação com os animais, com a vegetação, dejetos. Essa sensibilidade é pós-moderna.

CP: É uma mudança de cultura ou de civilização?
Michel Maffesoli: Utilizo essa distinção entre cultura e civilização. Esta é a diluição de algo que surge por um ato fundador que é a cultura. Em outras palavras, a cultura é uma efervescência criadora. Defendo que estamos assistindo ao renascimento da cultura naturalista. Veremos depois como isso de diluirá. Essa sensibilidade toca o povo e em especial as novas gerações. Os jovens revelam uma atitude mais generosa e receptiva em relação a essa revalorização da natureza.

CP: Como se concretiza hoje a transfiguração da política?
Michel Maffesoli: Essa transfiguração pode ser vista concretamente na decadência dessa forma de organização que foi o partido político, modalidade típica do século XIX, com sua divisão em esquerda e direita. Esse tipo de transfiguração traz sempre o melhor e o pior. O desencanto com a política produziu, por exemplo, Donald Trump nos Estados Unidos. Essa transfiguração apareceu também no Brexit da Inglaterra. Exprimiu-se também na Itália contra Renzi, que, no começo, parecia ter boas ideias. Essa transfiguração, sob a forma de desafeição pela política partidária tradicional, revela-se também na França com um segundo turno nas eleições presidenciais reunindo dois candidatos totalmente desconectados da população em geral. Nem Emmanuel Macron nem Marine Le Pen estão sintonizados com o povo. Há desconfiança. Esses períodos de desconfiança podem durar décadas. Estamos buscando uma nova relação mais sadia com a coisa pública. No momento, a insatisfação dominante assume as formas da revolta, da abstenção, do extremismo de esquerda ou de direita ou da escolha dos chamados aventureiros, daqueles que se apresentam como novidades.

CP: Qual a razão profunda dessa desafeição com a política?
Michel Maffesoli: Desafeição significa não ter mais afeto por alguma coisa. Durante muitos anos, no Centro de Estudos do Atual e do Cotidiano, que dirigi na Sorbonne, fizemos pesquisas sobre o comportamento dos jovens. É incrível como a abstenção eleitoral atinge essas camadas, especialmente entre 18 e 30 anos. Não há mais apetite pela política partidária. Há algumas décadas os estudantes militavam, engajavam-se politicamente, eram contestadores, esse tipo de coisa. Agora há uma forma de indiferença que se traduz na falta de atração pelo jogo político. A energia jovem vai para outro lugar. Ela está em todas essas novas formas de associação, de compartilhamento, de troca, de solidariedade, de generosidade, de ajuda mútua. Essa transfiguração leva da política partidária ao interesse comum de proximidade, comunitário, local, vivido nos bairros, vizinhanças, redes sociais.

CP: A disputa entre Marine Le Pen, de extrema-direita, e Emmanuel Macron, uma espécie de aventureiro, é acidente de percurso ou o essencial do momento político francês em consonância com o mundo?
Michel Maffesoli: Nem Emmanuel Macron nem Marine Le Pen me interessam. Ambos tentaram me atrair e me fizeram convites. Recusei. Esses nomes são puro acidente de percurso. É triste que estejam num segundo turno. O essencial é isso que já tratamos: o desencanto com a política. Eles são apenas a expressão momentânea dessa desafeição. Estavam no lugar certo na hora desse desinteresse generalizado. Não expressam programas desejados, mas a indiferença sob a forma da asneira. Algo irracional. As pesquisas de opinião mostraram que dois franceses em cada três ficaram descontentes com as escolhas feitas que resultaram neste segundo turno. Foi mais pulsional, instintivo, impensado. Marine Le Pen e Emmanuel Macron estão longe do concreto e da realidade popular.

CP: Como avaliar cada um deles mais detalhadamente?
Michel Maffesoli: Marine Le Pen explora a desconfiança em relação às elites. Quando somos incapazes de descrever as coisas como elas se apresentam é que aparecem os discursos de ódio, racismo e xenofobia. Marine Le Pen é o triunfo da demagogia num momento de incapacidade de expressão dos problemas concretos por outros meios. Assim, irresponsavelmente, ela defende separar a França da Europa e expulsar os imigrantes. Nada disso é realizável e defensável. A sua força vem dessa habilidade para explorar a desconfiança de uma parte da sociedade em relação às elites. Já Macron é o mais puro produto daquilo que a sabedoria popular rejeita: a tecnocracia. É um funcionário de alto escalão. Trabalhou em banco, sofre grande influência do setor financeiro e vive retocando sua biografia. Jean Baudrillard diria que se trata de um simulacro. Por exemplo, mentiu sobre ser de fato um filósofo. Vive de uma impressão de si, de fazer de conta que é isto ou aquilo, não se assume como aquilo que é realmente. Ele e Marine Le Pen foram visitar uma empresa em crise no Norte da França. Marine Le Pen foi ao encontro dos empregados. Macron ficou conversando com os patrões. É um sinal.

CP: Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon, candidato de extrema-esquerda, apresentaram-se como críticos da União Europeia em termos parecidos. A Europa, que foi a grande utopia, entrou em decadência?
Michel Maffesoli: Temos de falar do projeto europeu e do que, de fato, a União Europeia se tornou. A utopia comunitária converteu-se em Europa dos tecnocratas. Houve uma espécie de ‘‘exportação’’ do Estado. O modelo burocrático do Estado-Nação foi exportado para Bruxelas. Essa Europa não tem futuro. Não podemos, contudo, negar que existe hoje uma nova circulação no espaço europeu. Estudantes passam de uma universidade a outra em países diferentes. Retomamos o ideal imperial de circulação da Europa da Idade Média. Por um lado, então, a Europa tecnocrática acabou, como criticaram Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon. Por outro lado, não podemos negar que para as novas gerações é impensável ficar encerrado nos limites das fronteiras. Há agora um novo modelo de trocas, de intercâmbio, um novo comércio, uma Europa da cultura.

CP: Uma outra Europa é, portanto, possível?
Michel Maffesoli: Essa outra Europa já está sendo construída. É uma questão de olhar ou de onde para onde devemos olhar para enxergar o que está em gestação no cotidiano. Devo lembrar que sempre distingo a sociedade oficial da sociedade oficiosa e o poder da potência. A sociedade oficial, que representa o poder das instituições calcificadas, é a Europa tecnocrática fadada ao fracasso com suas regras e leis excessivas. A sociedade oficiosa age secreta e discretamente. Atua nos subterrâneos populares. A rede Erasmus de estudantes fortalece esse imaginário que vai além das fronteiras. Essa boa terra serve para cultivar a semente que germinará a Europa do futuro e com futuro. Precisamos ter a ousadia de ver as coisas por outros ângulos. Não me canso de repetir que ao longo da modernidade o desenvolvimento tecnológico produziu um desencantamento do mundo. Em contraposição, no que se refere ao que chamado de pós-modernidade nascente, a tecnologia tem favorecido um real reencantamento do mundo. Essa mesma tecnologia, associado a uma nova mentalidade, especialmente de parte dos jovens, um novo imaginário, está ajudando a produzir uma nova Europa real. Devo insistir que nem Macron nem Marine Le Pen correspondem a isso.

* Por Juremir Machado da Silva 

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