Ney Matogrosso: "Vamos deixar as pessoas serem quem são"

Ney Matogrosso: "Vamos deixar as pessoas serem quem são"

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Ney Matogrosso: “Este show foi uma espécie de antena antecipada, inconsciente, do que iria acontecer no país”. Crédito: Marcos Hermes / Agência Lens / Divulgação / CP


Difícil haver alguém neste mundo da música brasileira mais cabeça aberta e que inversamente proporcional a este ser descolado tantos tentam rotular, catalogar, compartimentar em gavetas de pensamento e comportamento quanto Ney Matogrosso. Aos 76 anos, a energia de Ney parece tão renovável quanto a dos parques eólicos. Prova viva disto é o show “Atento aos Sinais” que já dura cinco anos e um mês, com mais de 200 apresentações (já passou por Portugal, Argentina e Uruguai) e que chega a Porto Alegre pela quinta vez (já foram quatro vindas e seis shows: duas em 2013 com quatro shows, uma em novembro de 2015 e a mais recente em 1º de abril de 2017, com 3,6 mil pessoas superlotando o Araújo Vianna). A apresentação, esta rotulada como a última pelo próprio Ney (o giro deve acabar em abril), será neste domingo, às 20h, no Auditório Araújo Vianna (Osvaldo Aranha, 685). Com realização da MPB Produções e da Opus Promoções, o espetáculo tem ingressos a R$ 150.
Com direção musical do tecladista Sacha Amback, o show é a maior produção do qual Ney já fez parte, segundo ele próprio, e foi uma antena antecipada, inconsciente, de tudo o que ia acontecer no Brasil de 2013 para cá no cenário político e comportamental.  Com canções que vão desde “Rua da Passagem (Trânsito)”, parceria de Lenine com Arnaldo Antunes, “Incêndio”, de Pedro Luís, dos tempos da banda Urge, passando por “Freguês da Meia-Noite”, de Criolo, “Amor”, dos Secos & Molhados e “Roendo as Unhas”, de Paulinho da Viola, Ney constrói um repertório e uma performance cheia de luz (quatro telões de LED) e swing, com os requebrados, sensualidade e a sempiterna troca de figurinos no palco, também bela no show anterior “Inclassificáveis”. A última música escolhida para o repertório foi “Noite Torta”, de Itamar Assumpção. A banda que garante a pegada rock swingada do show é formada por Sacha Amback (direção musical e teclado), Marcos Suzano e Felipe Roseno (percussão), Dunga (baixo), André Valle (guitarra), Aquiles Moraes (trompete) e Everson Moraes (trombone).
Muito mais do que um dos maiores intérpretes da música brasileira, Ney também tem opiniões fortes e espontâneas sobre tudo e que muitas vezes não são compreendidas ou são tiradas fora de contexto, quando ele disse que era ser humano e não gay, como sempre o quiseram rotular, para a Folha de S. Paulo, em julho do ano passado. Nesta entrevista ao Correio do Povo, Ney fala do sucesso de “Atento aos Sinais”, diz que pensa mais nos shows do que no CD e DVD em si e pede para que certos grupos deixem as pessoas ser quem elas são: negros, trans, índios, bi, gays, lésbicas.

Correio do Povo: Você tinha consciência da natureza epifânica ou profética deste show “Atento aos Sinais”, concebido no início de 2013 e que acabou antecipando um pouco do que aconteceu no Brasil desde então?
Ney Matogrosso: Foi uma espécie de antena antecipada, inconsciente, que estava ligada. Eu falava de tudo que estava para acontecer, meio sem saber. Enquanto eu mostrava imagens e pensava na Primavera Árabe, eu não sabia que teríamos tantas manifestações e mudanças neste meio tempo. É um show que eu não conseguia parar, mas agora paro. Dia 7 de abril deve ser o último show. Faço Porto Alegre e aí volto para uma cidade em São Paulo, volto para o Rio. Então deu, né.

CP: E a partir desta parada, o que farás?
Ney Matogrosso: Não tem nada de ano sabático, mas também não vou emendar um show no outro, como eu sempre fiz. Preciso de um tempo entre um trabalho e outro para entender o que quero fazer. Atualmente, eu penso mais no show e não no CD ou DVD. Já tenho um bom repertório trabalhado, nada definitivo. Não estou muito preocupado em lançar nada. Se eu ficar parado um pouco, vai ser para algo bom.

CP: Você sempre defendeu a liberdade e os direitos plenos de todos os grupos, inclusive as minorias. Como analisa o atual momento de aumento dos direitos, mas de volta de grupos extremistas contra negros, mulheres, índios, comunidade LGBTQ?
Ney Matogrosso: Temos que deixar as pessoas serem quem são. Todos precisam ter os seus direitos respeitados, sejam eles mulheres, homens, negros, índios, trans, bi, tri. São direitos humanos, não só de minorias. Não adianta o governo, grupos políticos e  religiosos quererem impedir alguém de ser o que é. Ninguém decide que agora vai ser trans. Não é uma decisão, uma escolha pessoal. Vamos parar com esta palhaçada e respeitar o outro, as diferenças. Muitas vezes, eu não sou entendido nesta defesa. Naquela entrevista para a Folha, a repercussão foi exagerada. Falei que “gay era o c....” e foi tirado do contexto. Era como se eu tivesse me rejeitando. Não sou gay, sou um ser humano. Na ditadura militar, era conveniente que eu fosse o gay e não o subversivo. Vamos ser humanos e ter respeito. Ponto.

CP: E a tua relação com o Rio Grande do Sul, com o público, com os músicos?
Ney Matogrosso: Tenho ido mais para trabalhar, para fazer shows, mas acho o povo gaúcho muito receptivo. Não tenho trocado tanto com os músicos. O Vitor Ramil talvez seja a pessoa que eu mais falei, que eu canto mais músicas (no repertório de "Atento aos Sinais" já esteve a música Astronauta Lírico, que não é garantida no show deste domingo, mas pode entrar como uma homenagem ao Sul e a Vitor). O problema de falar com o Vitor é que ele vive meio isolado e eu também tenho esta propensão ao isolamento. Assim, fica um diálogo meio raro. Gosto muito dele, que é um dos principais compositores gaúchos.

CP: Como analisas estas mudanças pelas quais passou a música desde que começaste no início dos anos 1970 com o Secos & Molhados?
Ney Matogrosso: Não tem volta. É isto. O mundo está caminhando, avançando, que seja para o bem ou para um precipício. Temos que aceitar cada momento e ir em frente. Eu, por exemplo, trabalhava com gravadoras nos anos 1970 e 1980. Elas determinavam o que ia tocar ou não. Todas as rádios tocavam o que elas queriam. Eu nunca ouvi uma música deste disco “Atento aos Sinais” numa rádio. Deve ter tocado em uma ou outra independente. Embora na internet, toque muito e tenha muita coisa dos meus shows. Pelo menos, não dependo da rádio para fazer sucesso, como era no passado. É uma coisa boa.

Por Luiz Gonzaga Lopes

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