Por que ter censo

Por que ter censo

Mauren Xavier

Gervásio Neves, ex-diretor do IBGE no Rio Grande do Sul

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A pandemia da Covid-19 gerou uma grande discussão sobre a realização do censo no país. O mapeamento da sociedade brasileira é produzido a cada década. O Supremo Tribunal Federal decidiu que o Censo deve ser feito em 2022. O levantamento, porém, traz bem mais do que apenas dados, ele permite “conhecer o Brasil”, segundo o ex-diretor do IBGE no Rio Grande do Sul Gervásio Neves. Prestes a completar 87 anos, Neves coordenou a realização do censo em 1991. Formado em Geografia, ele defende o melhor entendimento e valorização das estatísticas, para que os gestores evitem os “chutes” e “achismos” no desenvolvimento de políticas públicas efetivas. Em entrevista ao Correio do Povo, Neves, que também é professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), analisou o impacto e as transformações sociais que os levantamentos estatísticos produzem e a sua importância social.

No momento há grande discussão sobre o adiamento na realização do censo no país. Em qual contexto que surge a necessidade da realização desse tipo de levantamento?

O governo monta o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e realiza o primeiro da nova fase do país em 1940. Ele nasceu porque o sistema estatístico até aquele momento era alterado e a cada hora tinha um. Não se comunicavam (os levantamentos) nem conceitualmente nem operacionalmente. Então, qual era a população da cidade de Porto Alegre? Onde é que fica a cidade de Porto Alegre? Qual pedaço da cidade era urbana? Não se tinha essa noção. Assim, o IBGE nasce como um projeto nacional. Esse projeto era o da Revolução de 1930 e o grande incentivador de um órgão estatístico nacional, por incrível que pareça, foi Juarez Távora, que era ministro da Agricultura na época. Era um jovem tenente. Então, os tenentes tinham um projeto nacional para o (então presidente) Getúlio (Vargas). E, naquele momento, isso era fundamental. Tanto que o governo criou o primeiro setor nacional centralizado com definições claras para o Brasil inteiro. E, ao mesmo tempo, criou o setor de estatística, que veio a ser o IBGE. Porque, naquele momento, as duas coisas não eram formalizadas. A única coisa que existia era o Instituto Geográfico Brasileiro, mas que não tinha nada de geografia, a não ser expedições, e que não teve nenhuma importância na fundação do IBGE.

O conceito era de projeto nacional?

A fundação do IBGE foi esse projeto nacional: “Nós precisamos conhecer o Brasil”. Conhecer o próprio país é a ideia fundamental de todos os institutos estatísticos desse tipo no mundo. É a questão da construção e da consolidação da nação através da informação constante sobre o povo e a terra. No fim é o povo, a terra e o seu produto.

Se a gente recordar que naquele momento, início do século passado, tínhamos um país ainda em formação, com revoluções, criações de estados e em processo de ocupação...

Naquele momento, a ocupação no país era fundamental. Não se conhecia o Brasil. Tinham-se ideias do Brasil, de um viajante, de outro viajante, mas realmente conhecer o Brasil, isso não. Estatisticamente, não se tinha ideia clara do país porque, em geral, a estatística era feita para definir o número de bispos. Os primeiros levantamentos eram feitos por paróquias. Com o IBGE, o país criou as suas próprias unidades.

E, neste processo inicial, quais eram as características?

No início, se dividia o território em urbano, rural e suburbano. Era uma boa divisão. O urbano era todo o espaço limitado legalmente como cidade, que era a sede do município ou do distrito. O resto era rural. O suburbano eram as novas áreas urbanas, as áreas de expansão. Mas isso deixou de existir, o que é uma pena.

Nesse processo de conhecimento da nação, se vai também em busca das características da população. O que se sabia da população até aquele momento e o que se passou a saber?

Antes do primeiro levantamento, dependia do interesse. Se podia fazer um Censo para a questão militar, saber a disponibilidade de gente para a guerra ou quantas pessoas poderiam ser mobilizadas. Ou era para definir a questão do imposto a ser cobrado. Mas com o IBGE, o Censo foi feito para conhecer o Brasil. Era dividido em três partes, a agropecuária, o industrial e o demográfico. O industrial não existe mais, porque é uma outra fórmula. Antes disso, o mais próximo que se tinha era um levantamento de 1872 (que é considerado o primeiro Censo do país), mas tendo muito como base a igreja. Depois vamos ter o de 1920, que já era governo, mas ainda não definido e limitado. O de 1940 é mais completo e preciso, mas preciso até determinado ponto. Existem pontos que são controversos e não tem como ser diferente, que é a declaração de raça e de religião, por exemplo.

Mas por que controvérsias?

Por ser autodeclaratório. Inclusive a questão do sexo. Por exemplo, no Censo de 1991, chegou um recenseador que tinha um “problema” porque o homem estava dizendo que era mulher. E ele dizia que “não podia ser” e não tinha problema, era o que declarava. É importante pensar nisso (ser autodeclaratório) porque, por exemplo, em 1991, os grupos negros estavam organizados, foram ao IBGE e fizeram uma campanha nacional para incluir a questão de cor mais intensamente (no sentido de as pessoas poderem se declarar).

Retornando ao levantamento da década de 40, o que representou?

Foi a primeira vez que o Brasil soube o que era. Ficou em evidência uma série de coisas. É um pouco complicado porque, na verdade, é o primeiro e de uma hora para a outra. Havia dados. Foi um sucesso inclusive do ponto de vista popular. As pessoas ainda tinham medo do censo, de que as informações fossem passadas para terceiros. Medo que ainda existe. Só que o dado do IBGE não serve para nada (juridicamente). Tanto que o IBGE é o único órgão estatístico e público no qual não há ingerência política, a não ser a escolha do presidente.

O censo foi mudando, acompanhando a sociedade. É isso?

Vamos pensar no censo feito em 1940 como a institucionalização da informação estatística. O censo foi para rua. Teve impactos. Ele trouxe informações que não se conheciam. Passou-se a ter definição operacional. Assim, tu podes usar os dados do IBGE dentro daquilo que foi preconceituado. Quando começam a aparecer coisas não conceituadas é sinal que alguma coisa precisa mudar. Uma informação a mais que é preciso ter (no próximo). Entre os censos, há um conselho, que é aberto para sociedade, para fazer propostas. Na minha época, foi feita uma grande discussão sobre a questão dos negros, como já falei, e a outra questão era da população com deficiência, que não aparecia no censo. Cada censo traz uma coisa que está dentro da discussão social.

E como é a preparação no caso dos recenseadores, aqueles que vão bater de porta em porta em busca dos dados de dentro das casas?

É muita gente. Em 91, por exemplo, tive 25 mil pessoas trabalhando no censo no Rio Grande do Sul. Na época, havia uma propaganda muito boa. O fundamental do censo é ele ser bem divulgado e bem trabalhado na sociedade. Sem isso não se faz. Vou dar exemplos. Tem que tomar cuidado para colocar determinado tipo de recenseador em diferentes áreas. Nas favelas, se não colocar pessoas da localidade, não se consegue fazer. Na zona rural, tens que ter pessoas próximas a eles, para garantir o conhecimento.

O que essas informações permitem entender?

Tudo o que tu quiseres, ao fazer combinações. Somos uma sociedade analfabeta em estatística. Inclusive no setor universitário. As pessoas não sabem ler e não sabem utilizar. Como não sabem ler, querem tudo pronto. Tens que cruzar informações.

O que significa não ter estatísticas?

O não ler permite saber que há alguma coisa que tu consegues ver, mas sem a estatística tu tens o chute. E há dois tipos de chutes, um por falta de informação e outro por uma série de informações estatísticas que são dadas por outras instituições das quais tu não sabes absolutamente nada das metodologias. Todo mundo tem o direito de fazer estatística. Tudo bem, faça. Agora, ela não substitui uma estrutura nacional. O IBGE, por exemplo, tem 10 mil funcionários no país. Cobre todos os municípios. Não significa que esteja em todos eles, mas atua. Por exemplo, foi uma barbaridade fechar a Estatística do RS (Fundação Estadual de Estatística).

Que se tornou hoje um departamento no âmbito do governo e que gerava os seus próprios dados.

Isso. Tinha uma tradição e tinha as informações regionais. E também trabalhavam os dados.

Então, mas como desenvolver políticas públicas sem essas informações?

No chute. Por exemplo, vamos perguntar: quantas pessoas vamos vacinar? Sei lá. Aconteceram duas coisas. Primeiro, o crescimento dos idosos. Assim, a taxa foi muito alta. E provavelmente já está ainda mais alta. Depois há a questão da relocalização. Vamos pegar o Censo de 91, em que a localização dos idosos em Porto Alegre se dava no Bom Fim, Independência. Tu conseguias definir as áreas onde moravam mais idosos. Agora é difícil. Creio que seja a área da zona Sul, em especial com a criação de novas instituições, de casas de geriatria. Isso relocalizou a população dos idosos.

A pesquisa também permite antecipar o impacto desse movimento, no caso do envelhecimento da população?

Até porque afeta a juventude, traz impacto social imenso. Hoje, com o número de casas geriátricas, há a relocalização, a mão de obra e a formação de mão de obra e a formação econômica de apoio para isso. Tens outro problema, a diminuição da taxa de natalidade. Como diminuiu, a taxa dos idosos vai crescer mais.

Estamos falando sobre dados pontuais, mas mostra como serve de identificador de comportamentos. Correto?

Exato. Por exemplo, a presença das mulheres. O predomínio das mulheres sobre os homens começa a aparecer em 1950 e 1960. O que aconteceu? Era apenas por que nasceram mais mulheres em Porto Alegre? Não. É que elas se relocalizaram. No Censo de 40, o número de homens era muito maior. A mulher passou a ocupar mais espaço, especialmente na educação. Então, a pesquisa vai mostrar que houve aumento de mulheres, em especial nas cidades grandes. Porque as mulheres passaram a migrar mais para as capitais.

Como a ausência de pesquisas, sem a realização do censo neste ano, impacta no entendimento sobre o que está ocorrendo socialmente?

Não teremos o resultado, por exemplo, do que a crise fez. Já passamos de 430 mil pessoas (número de mortos por Covid-19), é muita gente. Como que essa época de crise bateu na sociedade brasileira? Um exemplo, a questão dos mais velhos estarem em casas de geriatria é produto do quê? Da diminuição das famílias, da redução de pessoas disponíveis e do espaço residencial. Essas três coisas estão provocando os atuais residenciais de idosos no país inteiro.

Sob essa lógica, como analisar outras mudanças provocadas pela pandemia, como o impacto no trabalho?

O trabalho em casa. A gente não sabe o que pode acontecer. Os franceses já estão discutindo isso. Por exemplo, os ganhos trabalhistas vão diminuir sensivelmente. É aquilo que eu brinco com o meu plano de saúde, porque quero a correspondência impressa e recebida em casa. Não vou pagar impressão, papel e meu tempo. Eles têm que me enviar. Essa questão de trabalhar em casa é isso. Quem paga a luz?

E voltamos à questão da dificuldade do desenvolvimento de políticas públicas efetivas.

O perigo é termos projetos nacionais no chute. Porque tu passas a ter projetos a partir “do que eu acho”. E torna-se um país que não se conhece, onde não se sabe o que está ocorrendo. Por exemplo, quantas pessoas estão trabalhando em casa? Isso precisa aparecer. Vamos ficar esperando mais um ano ou dois até ter o resultado final (do censo) e vamos perdendo. E perdendo dinheiro, porque, por exemplo, se uma pessoa quer montar uma fábrica, ela precisa ter informações.

A estrutura do IBGE e essa questão de limitações, o que representa?

Existe uma conversa de privatização, o que seria um crime. Primeiro, porque vai disponibilizar uma massa de informações de quase um século e a perda desse autoconhecimento, o grande problema é esse. Hoje, o número de pessoas que não estão se vacinando não é apenas porque não querem se vacinar. Talvez seja porque, naquela faixa etária, não existiam. Estão usando dados de 12 anos atrás. O grande problema é que a sociedade brasileira também não está valorizando, inclusive na escola. Vai falar em dado estatístico, as pessoas acham que é só um número. Fazer o censo é um desafio. Agora, ler o resultado é outro desafio, é ler a sociedade brasileira. Sem ele, tu não tens a leitura da sociedade brasileira, tu não sabes nada.


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