Quando trabalho é problema

Quando trabalho é problema

Por Giullia Piaia

Giullia Piaia

"Quando a gente vai analisar as grandes pesquisas, a gente vê que o trabalho é um dos principais fatores de proteção emocional. As pessoas que trabalham adoecem menos do que as que não trabalham. Então, como que o trabalho sai de herói para vilão?"

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Médico psiquiatra formado pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP) e professor assistente do Departamento de Psiquiatria na mesma faculdade, Pedro Shiozawa é membro efetivo da Câmara Técnica em Psiquiatria e psiquiatra perito do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), além de membro da Behavioral and Brain Science Society da Universidade de Cambridge (Inglaterra). Autor do livro “Minds Matter”, na última quarta-feira, o médico foi palestrante no Sesi Conecta Saúde, em Porto Alegre, falando sobre a Síndrome de Burnout.

O que é o Burnout?

O Burnout é um uma síndrome descrita nos anos 70, mas que, nesse último ano, ganhou a primeira página dos jornais e atenção das empresas e da sociedade. Isso porque a OMS (Organização Mundial da Saúde) colocou uma definição nova de Burnout em seu código internacional das doenças. Ela foi descrita como síndrome, não como doença, mas uma síndrome. Uma síndrome é um fenômeno com sinais específicos, algo que pode acometer qualquer um de nós e que tem três sintomas específicos. Em algum momento da vida, qualquer um de nós pode apresentar estafa, cansaço mental e físico continuado, queda da performance profissional, não conseguir mais entregar os mesmos resultados, gastar muita energia para bater as metas, algo que não era típico da pessoa, e apresentar certo distanciamento emocional, ou seja, só de ouvir falar o nome da empresa já fica irritado. Esses três sintomas, estafa, queda da performance e o distanciamento emocional, caracterizariam essa síndrome. A OMS faz uma publicação a cada três ou quatro anos, que é um código internacional das doenças: o CID. A 11ª edição foi lançada em 2022 e lá o Burnout não está dentro do capítulo dos transtornos mentais, como, por exemplo, depressão e ansiedade, que a gente já conhece. Está no outro capítulo, no finalzinho, das condições que contribuem ou influenciam o estado de saúde. A definição oficial é que é um fenômeno relacionado ao ambiente de trabalho, que tem esses três sintomas específicos: estafa, queda da performance e distanciamento emocional. Além desses três sintomas fundamentais, o Burnout tem que ter duas outras características e essas são as mais importantes. Ele tem que decorrer de fatores limitados ao trabalho, ou seja, esse sintomas vêm de um sofrimento relacionado ao trabalho e a gente tem que ter afastado outras doenças como, por exemplo, depressão e ansiedade.

Então, é um fenômeno que entrou só agora no CID?

Exato, a gente falava na síndrome do esgotamento profissional antes. Ele não era categorizado como Burnout. E uma coisa superinteressante é que 75% dos casos julgados no Tribunal Superior do Trabalho (TST) com um componente de Burnout, na verdade também tinha outra doença como depressão e ansiedade. De acordo com a definição nova, por ter outras doenças juntas, não seria Burnout. O olhar hoje ficou muito mais sensível. O que o CID fez foi chamar nossa atenção para “olha, a pessoa tem um adoecimento, um processo que ela não é ela mesma, ela está estafada”. O trabalho pode adoecer. A gente tem que ficar muito atento para ver se a pessoa não está com alguma outra doença, que pode ser tratada com protocolo de tratamento de terapia e remédio, etc. Mas a questão é que o Burnout, enquanto fenômeno, tem que ser restrito ao trabalho e isso é mais raro do que a gente imagina. Cada um de nós tem a sua vida, problemas familiares, problemas financeiros e de saúde, então, existem casos que se limitam ao trabalho, mas talvez seja mais raro do que se imagina.

Como o senhor começou a se especializar no tema?

Tive oportunidade de cruzar com pessoas que trabalhavam com medicina do trabalho e esse tema começou a me chamar atenção. Na minha prática do dia a dia, passava o dia inteiro ouvindo as pessoas reclamarem do trabalho e com um monte de sintomas. Quando a gente vai analisar as grandes pesquisas, a gente vê que o trabalho é um dos principais fatores de proteção emocional. As pessoas que trabalham adoecem menos do que as que não trabalham. Então, como que o trabalho sai de herói para vilão? O que será que acontece nesse processo que a gente deixa de usar uma ferramenta que pode proteger a gente para expor os riscos? Aí comecei a estudar essa área e tenho estudado essa questão.

Qual a incidência do Burnout no Brasil?

Varia muito de acordo com a atividade profissional. Em linhas gerais, se estima de 30 a 35% da população. Para profissionais da saúde e professores, esses valores chegam a 50%, 60%, dependendo do estudo.

É uma situação que se resolve naturalmente ou tem que haver tratamento?

O Burnout vem de quatro pilares: demanda, recompensa emocional, recompensa financeira e propósito. É como se tivesse um carro com quatro rodas, se uma delas desalinha, você pode ter Burnout. Então, como a gente trata o Burnout depende muito do que está desalinhado. Uma vez um homem que vinha de uma família muito humilde tinha sido descoberto como coach e dava palestras no país inteiro. Ele estava estafado, teve um apagão no meio de uma palestra. Ele me falou: “Acho que não é mais para mim fazer isso. Eu achei que era, mas não é. Sempre gostei disso, me identifico, sou reconhecido e tenho retorno financeiro, mas não é meu caminho”. Na verdade, ele estava muito demandado. O problema era a sobrecarga. Ele tirou uma semana de férias e voltou. Já uma executiva me procurou uma vez com quadro de Burnout. Ela disse: “Nesse momento da vida, meu propósito é ter outro filho. Meu gestor me deu aumento porque falou que não podia ficar sem mim e comecei a ficar angustiada.” Ela acabou saindo do trabalho, tendo filho e voltando, já “superbem”. Mas a gente tem que entender, e o gestor tem que entender, onde pode estar o ruído. A gente mira nesse tema e a pessoa melhora rapidamente. O grande ruído, hoje, a gente vê até nos Estados Unidos, é a great resignation, as pessoas estão revisitando muito o propósito. Então, hoje, se você está em um trabalho que não faz você crescer enquanto pessoa, que não tem treinamento, não te habilita, você acaba saindo. E as empresas precisam lidar com isso.

O senhor diria que a condição é nova ou que a nomenclatura é nova?

Com certeza a nomenclatura. Burnout sempre aconteceu, mas a gente chamava de transtorno de adaptação, de síndrome do esgotamento profissional, a gente chamava tudo de ansiedade. O Burnout cria uma oportunidade para as pessoas pensarem com mais cuidado o trabalho. Porque, profissionalmente, as empresas tratavam saúde mental em programa de benefício. Contratava psiquiatra, psicólogo e pronto. Hoje a saúde mental faz parte da estratégia das empresas, com capacitação de lideranças, questão de segurança psicológica. Então, acho que o Burnout pôs esse problema na mesa.

A pandemia afetou os casos de Burnout?

A pandemia, em linhas gerais, não aumentou as doenças mentais, mas aumentou os sintomas. As mudanças das relações de trabalho ficaram escancaradas. A gente estava no piloto automático. As pessoas colocaram na mesa coisas que não eram discutidas antes. As pessoas estão visitando seu propósito interior. As pessoas estão pensando em revisitar essas questões. Mas, com certeza, qualquer sintoma ou fenômeno relacionado à saúde mental piorou na pandemia.

O que uma pessoa que pensa estar com Burnout deve fazer?

Na dúvida, peça ajuda. Temos que conversar com o gestor, com os familiares, com a saúde ocupacional da empresa e passar em uma avaliação especializada. Isso é importante. A pessoa que sente não estar no seu melhor, deve pedir ajuda. Não precisa ser na via médica, no começo, mas que fale com seu gestor, se se sentir preparada. E aí a gente tem um grande desafio, que é capacitar esses gestores em um ambiente de confiança.

 


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