PERDIDOS NO ESPAÇO

PERDIDOS NO ESPAÇO

No combate ao coronavírus, as autoridades públicas brasileiras não se entendem

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Por Martinho Neves Miranda

Em https://leiemcampo.com.br/perdidos-no-espaco/

“Perdidos no espaço” (1965-1969) é um seriado de televisão que conta as aventuras da família Robinson no cosmos a bordo da nave Júpiter 2, em companhia do Robô B9 e do Dr. Zachary Smith.

Em virtude da superpopulação na Terra, a família é enviada para o espaço, a fim de estabelecer uma colônia num determinado planeta para que outras pessoas também possam habitá-lo.

A viagem tem problemas e os membros da nave não conseguem chegar ao destino e ficam vagando indefinidamente pelo universo, tentando em vão retornar ao nosso planeta.

No combate ao coronavírus, as autoridades públicas brasileiras não se entendem e do jeito que as coisas vão, também parecem que não chegarão a lugar algum.

O Supremo Tribunal Federal contribuiu para isso. Ao entender que estados e municípios têm competência conjunta com o governo federal para regular o combate à pandemia, ele trouxe mais ambiguidades do que certezas, num momento que exige união de esforços para enfrentar o caos.

Por falar em união, a competência para regular o assunto, com todas as vênias é sim da União, uma vez que ela detém o poder de editar normas gerais sobre saúde, apesar de remanescer aos estados e Distrito Federal a competência suplementar a respeito do tema.

Para saber se a União extrapola do seu poder na edição das normas gerais, é fundamental deter-se na existência da predominância do interesse. Se o interesse é de cunho nacional a competência é da União. Caso contrário, estará invadindo a competência dos estados.

Neste aspecto, não é preciso refletir muito para concluir que o combate à pandemia é um tema que interessa ao país como um todo e não somente a este ou àquele estado ou município.

Isto fica mais evidente quando se analisa a Lei nº 8.080/90, em vigor até hoje, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes.

Logo no seu artigo primeiro é dito que

 Art. 1º Esta lei regula, EM TODO O TERRITÓRIO NACIONAL, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado.

 A lei delimitou as áreas de atuação de cada ente da federação em tema de saúde, oportunidade em que deu à direção nacional do SUS, a coordenação do sistema de vigilância epidemiológica, o que é evidentemente o caso da pandemia do Covid-19.

Veja-se o seguinte dispositivo:

Art. 16. À direção nacional do Sistema Único da Saúde (SUS) compete:

(…)

III – definir e coordenar os sistemas:

(…)

  1. c) de vigilância epidemiológica; e

(…)

VI – coordenar e participar na execução das ações de vigilância epidemiológica;

(…)

Parágrafo único. A União poderá executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) ou que representem risco de disseminação nacional.

No mesmo sentido, a recente Lei Federal nº 13.979/2020, editada com a finalidade específica de enfrentar o coronavírus, que, no art. 3º, fala das medidas restritivas à liberdade de ir e vir, condicionando expressamente a atuação do gestor local à autorização do Ministério da Saúde.

Todos esses aspectos foram infelizmente esquecidos pelo STF. Além do mais, ele confundiu a competência COMUM que é detida por União, estados, Distrito Federal e municípios para cuidar da saúde da população (art. 23, inciso II da CF) com a competência CONCORRENTE para legislar sobre saúde e que dá à União o poder de editar normas gerais sobre o assunto, com eventual suplementação de Estados e Distrito Federal (art. 24).

O resultado é que agora temos simplesmente 5.570 municípios e 26 estados, mais o Distrito Federal, legislando sobre o tema, com cada um decidindo do seu jeito, sem qualquer coordenação ou supervisão central, como se o combate à epidemia não fosse um problema comum a todo o povo brasileiro.

Embora não tenhamos essa intenção, estamos, no final das contas, sabotando a nós mesmos tal como fizera o Dr. Smith, um espião que, ao tentar sabotar a missão, não conseguiu sair da nave antes da decolagem e se perdeu no espaço junto com a família Robinson.

A decisão do Supremo provocou igualmente consequências no futebol. O Ministério da Saúde emitiu um parecer (inconclusivo por sinal) “achando interessante” o retorno da atividade (!), mas jogando a bola para o colo de estados e municípios diante da citada decisão do STF, o que só faz permanecer no ar o vírus da perplexidade e da insegurança jurídica.

Basta deparar-se com algumas questões que se apresentam em relação ao futebol:

Se um estado considerar que não pode haver jogos e outro entender que é possível, como é que será realizado o campeonato brasileiro? Se um município divergir da regra editada pelo estado do qual faça parte, qual a norma que irá prevalecer? A estadual ou a municipal? Caso as competições retornem, os protocolos de segurança serão diferentes para cada estado e município? E se determinado estado ou município dispensar qualquer medida preventiva, como ficará a saúde de todos?

Tudo isso só mostra que somos passageiros de uma nave que não chegará a lugar algum.

Nessa viajem sem destino, acabaremos todos perdidos no espaço.

No espaço territorial de um país chamado Brasil.


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