À espera de uma nova estação

À espera de uma nova estação

Um homem que só queria casar

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      Passei da idade das justificativas. Posso dizer que fulano é chato ou mofina e ponto. Por que mesmo? Porque eu acho. É uma das compensações da passagem do tempo e da perda da necessidade de agradar a todos. São coisas assim que deixam de exigir metafísica, hermenêutica e chá de camomila, não necessariamente, como costumam dizer os criativos, nessa ordem, ainda que a ordem dos fatores não altere o produto, se me faço entender com esses bons e velhos clichês. Como se sabe, clichê só é bom e clichê se for velho. A idade permite usar palavras como mofina sem temer o espanto dos jovens. Que se danem! No bom sentido dessa expressão, que talvez exista algum. Não?

Ronaldo não se casou. Esse é o ponto a ser comentado. Mas como? Era tudo o que ele queria. Havia nascido com a vocação para o casamento. Criança, quando todos queriam ser astronautas, pilotos de Fórmula 1, astros de rock, jogadores de futebol ou bombeiros, Ronaldo queria casar. Quando lhe perguntavam o que queria ser quando crescesse, ele respondia com ar angelical e a sua voz desafinada:

– Marido.

– Como?

– Quero ser marido.

      Ronaldo tornou-se um adolescente bonito e muitas meninas morriam por ele com visíveis pretensões matrimoniais, conforme os preceitos da época: família, flor de laranjeira e felicidade até a separação pela morte. Nenhuma moça, porém, parecia-lhe à altura do seu sonho de infância. A meta continuava a mesma, com o acréscimo de um termo:

– O que quer ser quando adulto?

– Um bom marido.

      Essa nova formulação arrancava exclamações de sogras em potencial, suspiros de meninas em flor e risotas dos marmanjos. Poderia ter saído daí a expressão “não se fazem mais homens como antigamente”, salvo pelo fato de que os homens de antigamente não se importavam em ser bons maridos. As mulheres tinham de aturá-los como eram e ponto final. A fama de casadoiro de Ronaldo correu mundo. Ao menos, o seu mundo, que ia do seu canto ao centro da cidade, que tinha três bairros. Candidatas não faltavam, ainda mais que ele herdaria o patrimônio do pai, um fazendeiro de boas terras e muito crédito no Banco do Brasil. Como era costume na época, Ronaldo formou-se em Direito e pensou em ser deputado. Tinha dinheiro para os votos. Se lhe faltavam ideias e bandeiras, sobravam-lhe os cabos eleitorais.

      O rapaz só não se elegeu por falta de paciência para concorrer. Andava ocupado fazendo o que chamava, por ter passado alguns meses nos Estados Unidos aprendendo inglês, de “test drive” das meninas com quem poderia se casar. Era um tempo de muito machismo e liberação feminina. Ronaldo via a emancipação da mulher como uma nova fronteira em benefício dos homens. Sei que a linguagem é brutal, como era brutal aquele tempo de utopias, guerrilhas e iê-iê-iê. Conto com o realismo de quem viu de perto os acontecimentos e mutações da história e não pode negar a verdade a quem possa se interessar por verdade em tempos de fake news, o que então recebia o nome de boatos. A única guria que balançou Ronaldo foi a Mariana. Pensou em casar com ela. Tomou a decisão. Encontrou uma resistência feroz da sua cândida e calada mãe.

– Com a Mariana tu não te casas.

– Por que não?

– Porque não quero.

– Qual é o problema?

– Ela é preta.

      Não casou. Não se revoltou. Ficou solteiro. A revolta não era da sua natureza. Vira amigos revoltados perderem a mesada e não estava disposto a correr tamanho risco. Apesar de ruim em matemática, tinha os seus cálculos. Contentou-se em aumentar as farras, multiplicar os casos, fazer algumas viagens, explorar as delícias das roletas no estrangeiro e apostar em corridas de cavalo. Nos momentos de melancolia, que os tinha por tédio nas longas tardes, consolava-se.

– Vida que segue.

A vida seguiu. A morte também. Herdou as terras do pai, as dívidas com o Banco do Brasil e um futuro enorme para preencher com sua indolência. Durante muitos anos, ocupado em ganhar a vida, não pensei no Ronaldo, até que soube dele outro dia. É incrível como personagens surgem do passado sem aviso prévio. Aposentou-se pelo INSS como funcionário de um escritório de advocacia de uma cidade vizinha à nossa, onde o seu pai também tinha algumas léguas de campo. As propriedades ficaram pelo caminho. Exigiam cuidados e novos empréstimos. Estes até eram possível. Os primeiros é que eram difíceis. Parece que manteve o otimismo, exceto quanto ao casamento:

– Então?

– Esperando uma nova estação – ele responde.

      Só agora me dei conta: Ronaldo era um chato. As demais conclusões, se possíveis, deixo aos cuidados atentos do leitor.


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