Éramos jovens e líamos Clarice Lispector

Éramos jovens e líamos Clarice Lispector

Escritora faria cem anos hoje

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      Num país de poucos leitores, ela é muito lida. Clarice faz cem anos. Digo faz por vê-la muita viva na paixão dos seus admiradores. Clarice Lispector vive. Ela detestaria o chavão. Tudo nela era diferente. Foi ucraniana (nascida em Chechelnyk a 10 de dezembro de 1920), alagoana (onde viveu poucos anos da infância), pernambucana (até a adolescência) e carioca, muito carioca, pela vida. Escreveu de um ponto de vista muito singular: o seu interior mais profundo, bem de “perto do coração selvagem”. Teve um lugar de fala antes da consagração da expressão: mulher insubmissa numa sociedade machista.

      No começo dos anos 1980, na Faculdade de Comunicação da PUCRS, fomos provocados pelo Irmão Mainar Longhi, professor inesquecível, a ler “A hora da estrela”, de Clarice. Éramos tantos e tão cheios de sonhos: Telmo Flor, David Coimbra, Rosane Aubin, com seus olhos verdes, Isabel, com seus olhos azuis, Sérgio Ludtke, Sérgio Bueno, Zé Trindade, Chico Camboim... Não posso citar a lista inteira, mas me lembro de cada um. E lá fomos nós para o bar do Mazza, na Bento Gonçalves, onde, no verão, o dono passava as tardes de molho numa banheira, à sombra das árvores, protegido por um chapéu de vaqueiro. Voltei lá décadas depois com o grande Michel Houellebecq, que mostrou interesse pela banheira, infelizmente, como o Mazza, já desaparecida.

      Alguns fragmentos das nossas discussões sobre Clarice Lispector e seus personagens desconcertantes em “A hora da estrela”, Macabéa e Olímpico, ainda existem nos confins da minha mente. As meninas estavam chocadas com a passagem em que Glória, colega de trabalho de Macabéa, pergunta-lhe sem a menor comiseração e talvez sem qualquer maldade:

– Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?

      Minha impressão já era a que ainda tenho: Macabéa, por instinto, talvez, que não sentia vinganças, deu o troco sem saber que o fazia, pois de nada sabia, nem de si mesma, era apenas uma triste figura:

– Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe pergunto se você que é feia sente dor.

      Glória negou ser feia. O nosso debate era sobre o conceito de beleza. Destruímos o padrão ocidental de beleza sem a menor a consideração pelo cânone enquanto admirávamos a beleza, que víamos como canônica, das nossas colegas. O David derretia-se pela Rosane. Quem não se derreteria? Ela era minha vizinha no Sarandi. O David ficava no IAPI. Eu tinha mais alguns quilômetros para conversar. Mas não estava na luta pelo coração da Rosane, coração que nunca foi do David, que eu saiba. O meu quase foi da Macabéa. Morria de pena dela. Das viagens até o Sarandi eu lembro quando Rosane e Roseli, uma mais linda do que a outra, me perguntaram, em plena avenida Assis Brasil:

– Londres ou Paris?

      Eu tinha acabado de chegar de Palomas e sonhava com o Bom Fim. Clarice Lispector falava de coisas tristes. Éramos tão felizes no futuro certo que não tínhamos todas as condições de amá-la naquele momento. De minha parte, guardei a enorme tristeza da sua narrativa. E uma frase de um colega no meio de uma discussão bastante acalorada:

– Daqui a quarenta anos a gente volta a falar da Clarice.

 


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