A biblioteca de Palomas

A biblioteca de Palomas

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Havia um livro de Borges na estante central. Eu não sabia quem era Borges. O livro chamava-se Fervor de Buenos Aires. Era um livro de poesias em espanhol. Durante os primeiros dias de inverno, com o minuano assobiando sem sossego, recusei aquele livro impiedosamente. Eu era apenas um adolescente entediado tentando captar a rádio Guaíba à noite para ouvir os programas de esportes. Só o Internacional de Falcão me interessava profundamente. Numa tarde, porém, em que vento e chuva se conjugaram para impedir qualquer aventura exterior, com minha mãe renovando a ordem de permanência dentro de casa a cada meia hora, resolvi dar uma espiada naquelas páginas estranhas. A língua era áspera.

Meu espanhol era pífio. Minha fome de poesia ainda não existia. Mesmo assim entendi alguma coisa do então misterioso poema “El sur”:

Desde uno de tus patios haber mirado
las antiguas estrellas,
desde el banco de
la sombra haber mirado
esas luces dispersas
que mi ignorancia no ha aprendido a nombrar
ni a ordenar en contelaciones,
haber sentido el circulo del agua
en el secreto aljibe,
el olor del jazmin y la madreselva,
el silencio del pájaro dormido,
el arco del zanguán, la hemedad
– esas cosas, acaso, son el poema.

 

Esbarrei em palavras como “aljibe”, “zanguán” e “hemedad”. Perguntei a um andarilho uruguaio que passava pela estância do João Peres o que significavam esses termos. Ele me explicou entre dois mates. Mas se calou quando lhe perguntei se já havia sentido o círculo da água. Depois disso, ele começou a me olhar com desconfiança. Jamais saberei o que havia entendido. A última vez que o vi, na vila de Palomas, já atendia pelo apelido de Tupamaro. Montou num zaino e se foi a trote.

Na biblioteca de Palomas, uma coleção de livros guardada numa chácara emprestada a meu pai, da qual conservo por apropriação indébita os dois volumes de Casa Grande & Senzala, obra-prima de Gilberto Freire, aprendi rapidamente a magia do livro: a gente entra num e sai em muitos outros. Entrava em Ciro Martins e saía em Erico Verissimo. Entrava em Balzac e saía em Flaubert. Entrava em Simões Lopes Neto e saía nas Mil e uma noites. Adulto, estudando em Porto Alegre, descobri Borges e compreendi a sua metáfora do labirinto. Uma biblioteca é um jardim de veredas que bifurcam. Um livro sozinho tem portas para todos os livros.

Cheguei a pensar nos livros ruins como casas sem portas nem janelas. Entendi, no entanto, que mesmos os piores livros têm frestas por onde entram a luz, o vento, o frio, o calor e as ideias de outros autores. Todo livro é e não é uma mônada. Como mônada, contém a eternidade. Como não mônada, ele se divide perpetuamente. Entrei adolescente de calção e camiseta do Inter na biblioteca de Palomas e saí um jovem de cabelos compridos e ideias fervilhantes. Oscilei entre o guri deslumbrado com os contos gauchescos que lá encontrei, aturdido por narrativas sobre gaúchos a pé e enfeitiçado pelo que não entendi como a poesia de Jean-Arthur Rimbaud. Sou aquilo que a biblioteca me fez.

      Cada vez que tento contar essa história começo por um ponto diferente, por uma lembrança nova, por um nó antes desconsiderado. A biblioteca é um hipertexto. Todas as páginas se interligam. Tive medo de me perguntar naquele pequeno grande mundo e dele nunca mais sair. Talvez isso tenha acontecido e só agora eu esteja percebendo. Naqueles dias de leitura na solidão da campanha eu fui Julien Sorel e Rastignac, mas fui principalmente um menino que vai para o colégio. Fui principalmente o que a minha ignorância não permitia nomear. Havia um livro de Borges na estante central. Ao lado dele eu coloquei instintivamente Uma temporada no inferno e Iluminações. No começo, era só uma brincadeira para confundir o dono dos livros. Mais tarde, eu soube que havia uma correspondência, uma afinidade eletiva entre eles.

Se os livros exilados do Dr. Concesso me abriram mundos, a imagem de uma senhora, esposa do meu primeiro patrão, me serviram de metáfora. Ela era a professora, a mulher culta. Voltou-me num poema borgiano.

 

A senhora dos livros

 

Quando eu a conheci,

Ela ainda era muito jovem.

Velho mesmo era eu, pasmem,

na minha ignorância de menino.

 

Andarilho desde cedo,

Leitor porém com medo.

Lembranças não têm norte,

São pássaros tirados à sorte.

 

Eu não sabia que o cego Borges

Podia nela ser visto:

Pátios, casas, insisto,

Armazém, ruas, destino.

 

Era Dona Maria Ibarra

Uma senhora com livros.

Fundação mítica de Santana,

Ontem, como hoje, mañana,

Brasileira, castelhana,

Alba, luna e ventana.

 

Uma palavra antes do tempo.

Eu a via do balcão,

Antes de ganhar o mundo,

Por auroras, casas, átrios,

Fazendo de tantos pátios

Pequenos mundos pátrios.

 

 





 

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