A escravidão nunca foi normal

A escravidão nunca foi normal

Um regime de força permanente

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      Há quem pense que a escravidão era “normal” e que todos a aceitavam como a chuva ou o sol. A escravidão nunca foi normal e só se manteve pela força – como prática cotidiana de castigo ou ameaça permanente. Sem isso, não duraria uma semana. Outro mecanismo foi a ideologia: inculcar no escravizado a ideia de normalidade da sua situação. Naturalizar. Podia funcionar com alguns, mas não como todos. Nem com a maioria. Se donos de escravos consideravam normal ser proprietário de gente, a maioria dos escravizados não pensava assim. Para manter a escravidão foram construídas leis (tudo pode ser legalizado) e teorias de justificação (raciais, civilizatórias ou religiosas, como a teoria do resgaste ao paganismo). O que mais funcionava eram o chicote, o terror e as execuções exemplares.

      A Inglaterra começou a pressionar por restrições à escravidão já nos anos 1810. O Brasil aprovou lei de extinção do tráfico em 7 de novembro de 1831, “para inglês ver”, não pegou. Continuou o contrabando. De direito, eram livres os escravos entrados no país depois de 1831, eles e seus descendentes. Em 1850, aprovou-se nova lei de abolição do tráfico. Alguns dos libertos de 1888 já eram livres pela lei de 1831. Na época da revolução farroupilha muitos países já haviam feito, ao menos, alguma tentativa de abolição parcial ou total: Portugal, na metrópole, em 1767, com a proibição de importar novas peças e com a lei do ventre livre de 1773; Dinamarca (1792), França (1794), embora Napoleão a tenha restabelecido em 1802; Haiti (1794 e 1804); Chile (1823); México (1810 e 1829); Inglaterra (1807, 1834 e 1838); Bolívia (1831), Uruguai (1842), Argentina (1813 e 1854). Bolívar começara o seu empenho abolicionista em 1816 e 1817 libertando negros republicanos. Em 1821, depois da batalha de Carabobo, libertou os escravos que possuía na fazenda San Mateo. Ventre Livre: Uruguai (1825), Argentina (1813), Peru e Venezuela (1821), Brasil (1871).

      Como a repressão era dispendiosa e nociva às “peças” castigadas, escravistas faziam concessões para obter alguma “docilidade”. Havia negociação e conflito. Escravizados também podiam mostrar-se mais “cooperativos” para alcançar algumas vantagens no dia a dia, especialmente entre escravos domésticos e urbanos, muitos trabalhando como escravos de ganho ou de aluguel. Na segunda metade do século XIX a campanha abolicionista dividiu a sociedade brasileira. José de Alencar e Machado de Assis receberam Castro Alves. O primeiro era escravista, o segundo, em cima do muro, o último, ativista da abolição. Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Rui Barbosa, Luís Gama, André Rebouças e tantos outros militantes denunciavam a infâmia do escravismo. Patrocínio, Gama e Rebouças tinham ascendência negra.

      Se alguns escravos desenvolviam o que mais tarde se chamaria, em relação a sequestros, de “síndrome de Estocolmo”, apegando-se ao sequestrador, essa não era norma. Leis de abolição gradual e alforrias procuravam proteger o amo para que não ficasse desamparado na velhice. Havia consciência do horror. Não via quem não queria. As rebeliões, fugas e suicídios de escravos mostram como eles percebiam a instituição. A propósito, quantos brancos foram escravos na época?


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