A humanidade é racional?

A humanidade é racional?

Aglomerações indicam comportamento irracional

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Humanidade

 

      Eu sempre quis entender a humanidade. Cheguei a acreditar que existissem teorias capazes de explicar a história e os acontecimentos sociais. Teorias do tudo e leis encadeando fatos. Hoje, acho que o historiador é um jornalista que cobre o passado e que os estudos são grandes reportagens intelectuais aprofundadas. O elo não aparece. Feito o preâmbulo, deveria vir a tese. É o que não há. Como explicar que as pessoas se aglomerem como um rebanho em busca de coisas que poderiam facilmente esperar dias ou meses: um vaso novo, uma bermuda, um relógio, uma camisa, um vestido, um presente para alguém? A única hipótese que levanto é sempre a do vitalismo: há um querer viver que se impõe contra tudo, até mesmo contra o risco de encontrar a morte.

      O coronavírus não acaba com o desejo de comprar mesmo aquilo que poderia esperar. Um analista cínico ou brutal levantaria outras hipóteses: ignorância, irresponsabilidade, burrice, estupidez. Eu me recuso a julgar os outros por medo de incorrer em erros aparentemente diferentes, mas substancialmente parecidos. Há muito perdi a ilusão de que a humanidade aprende com os erros do passado. É possível que apenas se distraia. As imagens dos centros populares de compras em São Paulo lotados ou de espaços de elite igualmente abarrotados me acendem o sinal da descrença na racionalidade humana. A razão é apenas um dos componentes a afetar o comportamento humano e não necessariamente o mais forte. As emoções combatem a racionalidade dia e noite e contaminam eleições, hábitos, escolhas existenciais e o consumo.

      A publicidade há muito desistiu de louvar as propriedades utilitárias dos produtos. Prefere falar às emoções por meio de conceitos que, às vezes, não têm qualquer vínculo com o oferecido. Uma imagem de felicidade pode vender qualquer coisa. Se há quem precise trabalhar e por isso corra riscos, há quem só queira comprar o que não lhe é essencial pelo desejo de satisfazer a sua vontade de consumo. Se a pessoa quer comprar algo, então, segundo a psicologia do consumidor, isso já é essencial. Se o consumidor arrisca-se a ser contaminado para adquirir um badulaque então já não haveria badulaque, somente artigo de primeira necessidade. O cliente nunca se engana e jamais deve ser menosprezado. Todo desejo seu deve ser respeitado e atendido. A pandemia não poderia frear o vitalismo mortífero do homo consumens.

      Não espanta que pessoas combatam restrições para ganhar o sustento. Provoca surpresa que tantos queiram ter liberdade para se aglomerar em busca de satisfações adiáveis: por que ir à praia agora? Por que pegar um avião neste momento em viagem de turismo? Por que sair em busca de um “gadget” qualquer? Talvez seja uma patologia mesmo. Numa rede social da vida, uma pessoa não se conteve:

– Se eu não sair para comprar alguma coisa, explodo.

      Jovens querem festa. Adultos desejam produtos. Idosos anseiam por encontros. Fomos adestrados para abraçar esse imaginário. A ocasião testa a eficácia da formação. O vírus foi bem assimilado.


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