A morte acidental da prova

A morte acidental da prova

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Todo ano, graças ao trabalho insano e competente de Luciano Alabarse, acontece o festival de teatro “Porto Alegre em Cena”. Fico imaginando a loucura: quando termina uma edição, tem de prestar contas e começar imediatamente a seguinte. Nunca para. É o tal de fluxo contínuo. É uma de escolher atrações, contatar grupos, negociar participações, marcar e desmarcar passagens, lidar com estrelas, lidar com quem deseja ser estrela, lidar com quem acha que já é estrela. Ufa! O resultado é que conta. A gente agradece de joelhos.

Desta vez, uma peça caiu como um veredicto sobre a cidade: A morte acidental de um anarquista. Um texto já canônico do italiano Dario Fo. A montagem mostrada no São Pedro tem o ator Dan Stulbach exuberante no improviso e na interpretação da “letra fria” da obra. É verdade que o pessoal do centro do país, para adular gaúchos carentes, jamais deixa de cantar “deu pra ti, baixo astral”, saudar Erico Verissimo e Mario Quintana e falar guri ou bá com um sotaque punk. Proponho fazer o mesmo em São Paulo ou no Rio de Janeiro:

– Viva Mario de Andrade! Viva a Semana da Arte Moderna! Porra, meu!

Acostumados a discursar contra estereótipos, artistas vivem paradoxalmente repetindo clichês para garantir uma empatia imediata com a plateia ansiosa por um afago das celebridades “de fora”. Um truque fácil. O público se reconhece na mesmice. Como não custa nada, é distribuído gratuitamente. Um regalo. Passemos ao que interessa. Como disse Guy Debord, na introdução ao seu filme “Uivos em favor de Sade”, de 52 minutos sem qualquer imagem, “o cinema está morto, não pode mais haver filme, passemos ao debate”. O teatro está vivo. Deu gosto ver a longa fila para o espetáculo. Teve até o tradicional “fora, Temer”. Virou chavão. É bis, por que parou? e fora, Temer.

A morte acidental de um anarquista é muito atual. Ensina como produzir uma prova quando só há convicções ou, mais ainda, quando não há fato ou o que existe revela o contrário do desejado pelas forças da lei e da ordem. Um homem é acusado de um ato terrorista. A polícia joga-o pela janela da delegacia. Cabe provar que o acusado teve uma súbita ânsia de suicidar-se e não se controlou. Ocorre. A ambulância foi chamada antes mesmo do voo mortal. Pura precaução de praxe. É incrível como tem gente que, acusada injustamente, fica com vontade de se matar comprometendo o aparato estatal por causa de um empurrão.

Um louco desmascara tudo. Ele se faz passar por juiz. Eis o ponto. Só um falso juiz pode ainda produzir alguma verdade. Sabe-se que o conceito de verdade, como o de prova, varia com as convicções dos interessados. A lógica de um louco, porém, pode ser mais realista. Não se contenta com indícios. Quer materialidade. Não se satisfaz com meros encadeamentos lógicos. Busca mais do que isso. Dan Stulbach e o elenco de A morte acidental de um anarquista mataram a pau. Há, contudo, uma grave falha de produção: faltou um powerpoint. Sem bolinhas azuis e setinhas nada fica provado. É uma convicção.

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