A roupa das crianças na história

A roupa das crianças na história

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História da infância

 

      Um dos meus livros prediletos é “História social da criança e da família”, do historiador francês Philippe Ariès.

Foi uma das leituras que me tocaram tanto como estudante de história quanto como mestrando em antropologia.

Eu me lembro de falar sem parar nos bares da vida do que estava aprendendo. Foi tão revelador para mim quanto a leitura de “O processo civilizador”, de Norbert Elias. Nunca mais fui o mesmo depois de ter mergulhado nessas obras escritas com tanta clareza e profundidade.

“História social da criança e da família” começa de maneira provocativa: “Um homem do século XVI ou XVII ficaria espantado com as exigências de identidade civil a que nós nos submetemos com naturalidade”. Um dos capítulos do livro tem por título “o traje das crianças”. É um choque cultural: “A indiferença marcada até o século XIII – a não ser quando se tratava de Nossa Senhora menina – pelas características próprias da infância não aparece apenas no mundo das imagens: o traje da época comprova o quanto a infância era então pouco particularizada na vida real. Assim que a criança deixava os cueiros, ou seja, a faixa de tecida que era enrolada em torno do seu corpo, ela era vestida como os outros homens e mulheres da sua condição”. A cada época, uma maneira de pensar e vestir.

A roupa representa também um sistema de hierarquia social. Os homens do século XIII não admitiam crianças infantilizadas. No começo do século XVII, meninos e meninas usavam um vestido abotoado na frente. Ariès descreve um desenho de um menino feito por Rubens: “o vestido aberto, sob o qual aparece a saia”. As roupas sempre provocaram polêmicas: “A partir do século XIV, os homens abandonaram a túnica longa pelo traje curto e até mesmo colante, para desespero dos moralistas e dos pregadores, que denunciavam a indecência dessas modas, sinais da imoralidade dos tempos!”

A roda dos costumes gira sem parar. Philippe Ariès destaca aspectos curiosos: “A partir do século XVII duas outras tendências iriam orientar a evolução do traje infantil. A primeira acentuou o aspecto efeminado do menino pequeno (...) usava o vestido e a saia das meninas”. Com a gola de rendas, por dois séculos “tornou-se impossível distinguir um menino de uma menina antes dos quatro ou cinco anos”. As calças compridas para criança só entrariam em cena no século XIX como encantamento por uniformes. As meninas adoraram e graças às calças “se libertaram” do vestido comprido.

A conclusão do grande historiador é um convite à reflexão: “O sentimento de infância beneficiou primeiro meninos, enquanto as meninas persistiram mais tempo no modo de vida tradicional que as confundia com os adultos: seremos levados a observar mais de uma vez esse atraso das mulheres em adotar as formas visíveis da civilização moderna, essencialmente masculina”. O livro mostra também a “rudeza da infância escolar” e como os maridos se tornaram “déspotas domésticos”. Ariès termina assim o seu livro: “O sentimento da família, o sentimento de classe e talvez, em outra área, o sentimento de raça, surgem como as manifestações da mesma intolerância diante da diversidade, de uma mesma preocupação de uniformidade”. Ariès se via como um anarquista de direita.

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