A saga do medíocre

A saga do medíocre

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Eu entro em surto.

Quem nunca entrou que atire o primeiro diagnóstico. Quando entro em surto, fico masoquista. Digo verdades sobre mim que me parecem grandes mentiras depois. Estou em surto. É um problema. Começo a ter ideias. Examino a possibilidade de ser governador do Estado e presidente da República antes dos 65 anos de idade. Xingo a Ana Paula Arósio por estar ficando velha e ainda não ter me telefonado. Fico sem entender a presidente da República por não ter me oferecido um ministério. Eu jamais pagaria motel com dinheiro público. Nem com o meu. Não vou a motel. Quando entro em surto, penso muito em livros. Pego no pé dos editores, dos distribuidores e dos livreiros.

Fico mala.

Nada pior do que um escritor maldito e medíocre em surto. O cara quer resolver a parada de qualquer jeito. O mundo é assim, cheio de paradoxos. Guimarães Rosa é certamente o melhor escritor brasileiro do século XX. Mas o melhor livro brasileiro do século XX que li foi escrito por um medíocre: “Os tambores de São Luís”, de Josué Montello. Isso me consola e encoraja. Aí é que mora o perigo. Um medíocre também pode escrever obras-primas. Tudo depende da boa ou má vontade dos críticos e dos leitores. As duas grandes obras literárias brasileiras podem ser reduzidas a pó por um crítico cínico em surto: Capitu traiu ou não traiu pode virar Bentinho era ou não era corno? “Grande Sertão: veredas” pode se resumir a um questionamento nada metafisico: Riobaldo era moça (não estou falando da Diadorim) ou chegado num moço? Aquela reviravolta de última hora ainda não convenceu todo mundo.

Como é que Diadorim fazia xixi no mato mesmo?

Escritores medíocres fazem críticas medíocres. Adoram rebaixar a discussão. Eu sou assim. Do pescoço para baixo tudo é canela. Tem leitor que detesta quem diz “eu”. Outros detestam mais ainda quem demonstra ressentimento. Eu sou a favor do ressentimento, embora não o sinta, o que poucos acreditam. O cara que trabalha oito por dia, sacode nos transportes lotados por mais quatro horas diárias e ganha menos de um salário mínimo por mês tem direito ao ressentimento. O sujeito, como eu, que lê toda a ficção brasileira tem direito a entrar em surto. É punk. Salva-se muito pouco. Em geral, o que não ganha prêmios ou não tem mídia. Falo muito de literatura aqui. Muitos reclamam. Dizem que é um tema menor. Pedem-me para tratar mais dos buracos das ruas. Estou quase aceitando essas sugestões. A literatura é buraco sem fundo. Ninguém vai melhorá-la até o fim deste século.

Ainda bem que nem todos os meus surtos são tomados pela literatura ou pela politica. Em alguns, fico mudo e sem vontade de escrever para felicidade geral da nação. Meu último surto desse gênero aconteceu há exatos 36 anos. Todo colunista mente para seus leitores. Ou omite coisas. Eu não. Entrego a minha maldição e a minha mediocridade. Confesso quando estou em surto. Meus piores surtos, porém, são os criativos. Produzo dois livros em seis meses. Meus editores já pensam em se cotizar para me internar se isso acontecer novamente.

Sairá mais barato do que publicar os meus livros. O retorno será maior.

Fui a uma livraria.

Havia malas, pastas, porta-retratos e outros objetos à venda.

Pedi um livro meu,

Não havia.

O pessoal nem o conhecia.

O pior lugar do mundo para se vender livros hoje, para quem não é Paulo Coelho nem vampirom, é a livraria.

Os livreiros reservam seus espaços para best-sellers de quinta categoria.

Autores normais dependem da mídia carioca e paulista, que faz jogo de compadre com algumas editoras.

Quem bate de frente, está fora.

É por isso que o Rio Grande do Sul só tem um caminho, a separação.

Desde que ela não seja feita pelos farroupilhas.

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