A tragédia do Alzheimer

A tragédia do Alzheimer

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Acredito na teoria do sorteio. Cada um de nós tem o seu. Um dia, sai o sorteio com a doença que nos tocará para sempre. Tenho medo de que no meu sorteio dê Alzheimer. A última escalação completa do Inter de que me lembro é a de 1976. Mas sou ex-colorado. Deve ser isso. Dizem que quem lida com o universo intelectual tem mais chances de escapar. Duvido um pouco. Em certas fases da vida, li um livro por dia. Espero ter um crédito. Nunca leio menos de 50 páginas por dia. Mesmo assim, não me sinto seguro. Qualquer esquecimento já me assusta.

Essa introdução toda para dizer que fui ver O lugar escuro, peça dirigida por Luciano Alabarse com base em texto da escritora Heloísa Seixas. É a história de uma mulher devastada pelo Alzheimer.

Demos um passo atrás no comentário para dar alguns à frente. Luciano Alabarse é um herói. Ama o teatro, vive para o teatro, monta espetáculos incríveis e ainda recebe cada espectador com um aperto de mão, um beijo ou um abraço. Tudo isso numa época em que importantes são os livros de colorir para adultos e o Pokémon go. Para quem possa não saber, Luciano é o responsável pelo Porto Alegre em Cena. É também secretário da Cultura de Canoas. Cria, administra e sonha. Na sociedade hiperspetacular, quem quer ver sábado à noite uma peça profunda e dolorosa sobre três mulheres (avó, mãe e filha) aspiradas pelo círculo infernal de uma doença impiedosa?

Quem não foi, perdeu.

É verdade que, ao receber o belo material de divulgação da peça, o sujeito vacila ao ler: “O Alzheimer é uma doença neuro-vegetativa que provoca o declínio das funções intelectuais, reduzindo a capacidade de trabalho e de relações sociais, interferindo no comportamento e na personalidade. De início, o paciente começa a perder sua memória mais recente. Pode até lembrar com precisão acontecimentos de anos atrás, mas pode esquecer que acabou de realizar uma refeição”. A reação é mais ou menos esta: o que estou fazendo aqui? Uma informação suplementar semeia o terror: “No Brasil, existem cerca de 15 milhões de pessoas com mais de sessenta anos de idade. Seis por cento delas sofrem do mal de Alzheimer”. Serei o próximo? Pensei em fugir do Instituto Goethe.

Consegui permanecer.

Não me arrependi. Sandra Dani, Vika Schabbach e Grabriele Poester tiveram atuações esplendorosas. Luzes fulgurantes numa reflexão sobre escuridão da mente. Encarnam personagens de uma tragédia familiar com veracidade. No dia em que a neta vai sair de casa, a avó dá os primeiros sinais de que nunca mais será mentalmente a mesma. A sequência é o que, tomando emprestado o famoso título da obra-prima do escritor francês Louis-Ferdinand Céline, pode-se chamar de viagem ao fim da noite. Um percurso em que o velho se infantiliza sem recuperar as alegrias de ser criança.

Uma tragédia sem grandeza como costumam ser as tragédias do cotidiano de qualquer um de nós.

Saí da peça pensando na vida. Não tenho filhos. Antes, eu me contentava com a frase de Machado de Assis: “Não tive filhos não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Agora, estou mais umbilical. Quem me cuidará se eu tiver Alzheimer? Parece que atualmente mesmo quem tem filhos acaba abandonado. Tenho uma mentalidade antiga ligada à ideia de ciclo familiar. Uma geração cuidando da outra, sacrificando-se pelos seus. Sei que já não é bem assim e que não se deve julgar as escolhas de cada um. Normalmente os homens morrem mais cedo. A Cláudia será atingida pelo sorteio que me couber? Terá de me ver definhar? Acompanhará o meu lento apagão?

Aos que possam já estar esfregando as mãos de contentamento, creio que ainda vai demorar algum tempo. Luciano Alabarse montou uma peça curta, com uma trilha sonora bastante adequada e, o que parecia impossível, alguma leveza, na medida certa para não cair no inverossímil, num tema esmagador. As personagens vão do desespero aos momentos de ternura, da raiva à compreensão, do ressentimento à solidariedade. É como se cada um perguntasse o tempo todo: por que eu? Por que comigo? Por que me coube essa doença entre tantas?

O cientificismo não gosta da palavra destino. Eu tendo a vê-la com tranquilidade e até com certo apreço. A ciência ainda não explica convincentemente os sorteios de cada um. Em certos casos, sim. Em muitos outros, não. Quando a ciência explica é que não houve sorteio. Foi procura ou um conjunto de circunstâncias mapeáveis. O lugar escuro representa uma experiência familiar de Heloísa Seixas. Acima de tudo, porém, explicita a fragilidade a que todo ser humano está exposto e contra a qual nada pode. Um sábado pela manhã de um ano qualquer e, de repente, a pessoa acorda em casa e pensa que ainda está num hotel em Caxambu. Saiu o sorteio. Não há mais como recuar.

Melhor não sofrer por antecipação. O sorteio sempre pode surpreender.

 

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