A vacina e alma russas

A vacina e alma russas

Seria possível uma fraude?

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A Rússia registrou a sua vacina.

O presidente diz que uma de suas filhas tomou duas doses.

A OMS paga para ver.

Seria possível uma farsa?

Dostoievski não tinha papas na língua. Segundo ele, “o liberal russo é sobretudo um bajulador, e está sempre procurando alguém para puxar o saco”. Existirão muitos liberais russos? Estarão eles correndo para bajular o “czar” Putin, que deseja vencer a nova “corrida espacial” emplacando a primeira vacina mundial contra o coronvírus? Dostoievski mergulhou na alma russa a ponto de enfurecer muita gente. Vladimir Nabokov, autor de “Lolita”, via nele “um escritor de terceira categoria cuja fama é incompreensível”. Inveja? Diferença estética?

Não importa. Teria Dostoievski desvendado uma capacidade genuinamente russa de competição e de desejo de glória? Seriam os russos de hoje capazes de mentir sobre uma vacina apta a frear a tragédia do coronavírus? Teriam eles coragem de inocular em milhões de pessoas uma vacina de segurança e eficácia não comprovadas? Cientistas por toda parte estão surpresos com o anúncio de que a Rússia pretende vacinar a sua população contra a covid-19 a partir do próximo mês de outubro. Nenhum estudo científico foi publicado até agora com dados do desenvolvimento da vacina pelo Instituto Gameleya. A fase três, de testes com milhares de seres humanos, que se saiba, não aconteceu.

Será que o raciocínio é do tipo roleta russa: se a vacina pode até matar pessoas ainda assim não seria melhor correr o risco do que continuar a contar mortos pelo vírus? A ética científica não contempla, em princípio, atalhos desse gênero. Uma pandemia abre novas possibilidades? O jogo político, no entanto, não costuma ser ético. Talvez por isso Dostoievski não tivesse ilusões: “Às vezes, se fala na brutalidade animal do ser humano, mas isso é incrivelmente injusto e insultante para as feras; um animal nunca poderia ser tão cruel como o ser humano, tão artisticamente cruel”. Ou tão politicamente cruel.

Vladimir Putin não é homem dado a dúvidas. Ele se vê como um personagem diferenciado, um ser escolhido para comandar e abrir caminhos inusitados: “Serei eternamente grato ao destino e aos russos por terem confiado em mim para ser o chefe do governo da Rússia”. Certamente não duvida de que o destino reserve a ele e ao seu país o privilégio de salvar a humanidade do coronavírus. Como jogador, quanto ele estará disposto a apostar pela glória eterna? Se aposta é, os dados serão lançados rapidamente. É vacinar e pagar para ver. Por enquanto, a Rússia experimenta o sabor da desconfiança mundial.

Em “O jogador”, Dostoievsky desnuda a “alma” russa? “Sim, às vezes o pensamento mais louco, o mais impossível na aparência, implanta-se com tal força em nossa mente que acabamos acreditando em sua realidade… Mais ainda: se essa ideia está ligada a um desejo forte, apaixonado, acabamos acolhendo-a como algo fatal, necessário, predestinado, como algo que não pode deixar de ser nem de acontecer! Talvez ainda haja mais: uma combinação de pressentimentos, um extraordinário esforço de vontade, uma autodireção da própria fantasia, ou lá o que seja – não sei”. Tomara que a vacina funcione.

 


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