Absolutamente relativo e relativamente absoluto

Absolutamente relativo e relativamente absoluto

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Verdades relativas

 

      José é relativista. Pedro tem certezas absolutas. São amigos e se detestam. Se um pensa uma coisa, o outro pensa o contrário. Não deixam de discutir um só dia. Se um adoece, o outro fica preocupado e corre para fazer uma visita. A trégua não dura o tempo de um chá, pois ambos pararam de beber álcool por recomendação médica e instinto de sobrevivência. Estão na idade dos seguros de saúde mais caros, dos seguros de vida e do pavor com a insegurança nas ruas a qualquer hora.

– Não existem verdades absolutas – afirma José categoricamente.

– Tem certeza? – provoca Pedro.

– Absoluta – entrega-se José.

– Neste caso, se você está certo, então está errado – diz Pedro.

Quando não estão jogando bocha, discutem lógica. Quando não falam de futebol, debatem o futuro da humanidade. Pedro lamenta a perda dos valores e das referências que orientavam a sociedade. José comemora o fim do autoritarismo e da hipocrisia que dominavam o passado recente. Pedro culpa maio de 1968 pela destruição da família. José vibra com o surgimento de novos tipos de organização familiar. Pedro é tradicional. José é pós-moderno. Entre eles, falta a modernidade, que se perdeu nalgum desvio da história do século XX.

– Se Deus está morto, tudo é possível – observa Pedro.

– Se tudo é possível, então Deus está vivo – rebate José.

As esposas arbitram os conflitos entre os dois, que podem durar horas, destruir um jantar, aniquilar um almoço, soar com um ataque de mísseis ou retumbar como um baile funk. Elas proibiram as discussões entre os esposos sobre política com um argumento irrefutável: questão de saúde pública. José e Pedro entram em acordo para enganá-las. Fingem desinteresse pelo assunto, passam três ou quatro dias em harmonia e conseguem passe livre para um encontro sem elas no bar.

– O comunismo é a chaga da humanidade – dispara Pedro.

– Bom é o fascismo – retruca José.

A partir daí ninguém pode detê-los. Só saem do campo de batalha quando um se ofende e declara inimizade eterna. A contagem dos mortos do comunismo e do capitalismo está cada vez mais sofisticada, vai do lápis à calculadora, das citações bibliográficas aos vídeos no youtube, dos memes da internet a documentos cujas fontes nunca parecem seguras. Pedro é pessimista quanto ao presente, entusiasta do passado e temeroso em relação ao futuro. Mesmo assim, mantém-se positivo:

– A ciência nos ajudará a fazer um amanhã melhor.

José é pessimista quanto ao futuro, admirador do presente e crítico severo do passado, que chama de Era da Barbárie Civilizada.

– Hoje é melhor do que ontem – diz sempre que necessário.

As eleições presidenciais de 2018 estão estremecendo a bela amizade dos dois. O momento de ruptura avança como uma ameaça real.

– Se você der aquele passo, nunca mais fale comigo – diz José.

– Aquele voto, o voto naquele patriota? – questiona Pedro

– Exatamente. Há um limite para tudo – confirma José.

– Então existe uma certeza? – Debocha Pedro.

– Vote e me conte se tem dúvida – diz José.

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