Agripino, o mágico dos dois palmos

Agripino, o mágico dos dois palmos

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Como fizemos uma longa reforma em casa, pude observar a importância das velhas profissões: pedreiro, encanador, eletricista e marceneiro. São uns artistas esses trabalhadores que transformam um apartamento em poeira e depois magicamente reformam tudo. Fiquei pasmo com a arte do Agripino.

Ele é marceneiro, chaveiro e sei lá mais o quê. Parece saber tudo. Encomendamos uma mesa de trabalho para a minha biblioteca. Sim, eu consegui ter a biblioteca dos meus sonhos. A mesa ficou muito grande.

Sou meticuloso. Ela tinha dois palmos a mais que não me deixavam dormir. Estragava a simetria de tudo. Triste.

Agripino olhou e disse: “Eu corto essa mesa e boto no tamanho que desejar”. Fiquei meio em dúvida. A mesa custou caro. Foi feita por uma empresa especializada. Estava linda, imponente, preciosa. Mas com dois palmos a mais. Cheguei a ficar irritado por causa daqueles dois palmos. Eles eram como uma nota desafinada numa sonata de Beethoven. Eu queria ouvir Beethoven atrás da minha mesa nova, olhando meus livros, sem a menor imperfeição. De certo modo, trabalhei a vida inteira como um louco para ter a biblioteca e a mesa numa união perfeita, numa harmonia capaz de encantar os meus olhos. Pode ser até que não chame a atenção de outros. O Agripino repetiu: “Eu corto essa mesa e deixo no tamanho certo”. Em quanto tempo? Ele nem pestanejou: “Numa tarde”.

Deixei passar uns dias olhando a mesa, andando em torno dela, pensando.

Havia um problema a mais: a luz natural. Tenho uma relação muito particular com a luz natural. Gosto de estar sempre de lado em relação ao ponto de onde vem a luz. A mesa grande exigia que eu ficasse de frente, o que me obrigava a ir fechando a persiana conforme o avanço do dia. Tudo me levava a uma conclusão inapelável: era preciso cortar a mesa. Fiquei olhando para o Agripino: magro como eu, mais velhinho do que eu, seguro como um leão: “Eu corto essa mesa”. Um dia, acordei decidido: “Pode cortar”. Não deu outra. Agripino atorou a mesa. Tirou-lhe os dois palmos como um cirurgião renomado que extrai a parte doente que nos faz sofrer. Um sucesso. Colocamos a mesa na posição certa. Compramos uma cadeira nova. Sentei-me como um rei. Coloquei Beethoven. Joguei-me para trás com as “Obras Completas” de Borges em cima da mesa. Que conjunto!

Senti-me dono do mundo. Meu mundo.

Tudo graças ao Agripino. A ele e todos os que, como verdadeiros artistas, transformaram um amontado de escombros produzidos por eles mesmos, sob encomenda, num apartamento novinho. Confesso que, embora parecesse alheio a tudo, eu sentia certa inveja deles. Que capacidade para resolver problemas que me parecem tão complexos quanto a teoria da relatividade. Por exemplo, instalar um vaso sanitário ou passar fios de eletricidade por um cano. Nada, porém, conseguiu me fascinar mais do que a obra de arte do Agripino. Com mão certeira, ele extirpou os dois palmos de madeira que me fizeram sentir por um momento um homem fracassado. Se tivesse de começar de novo, aprendendo uma profissão, ia querer ser pianista, ator ou marceneiro.

Tudo por dois palmos.

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