Alguns planos familiares

Alguns planos familiares

Avançar ou recuar?

Juremir Machado da Silva

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Então ele disse, como se falar sozinho fosse normal, que era hora de mudar. A vida havia bifurcado: os filhos já não moravam em casa. A síndrome do ninho vazio devastara a sua alma por alguns anos. Os netos não vieram por causa da ideologia do casal moderno. Nada podia atrapalhar o êxito profissional. A carreira acima de tudo. A filha mais velha tem um posto de prestígio numa empresa de tecnologia no Vale do Silício. Só fala em algoritmos. O primogênito é funcionário da União Europeia. O menos ambicioso conseguiu um cargo na CBF.

Revisou as contas nos seus aplicativos no celular como faz todo os dias para passar o tempo e se sentir mais confiante. Tinha o suficiente para uns vinte anos. O mais provável, considerando as tábuas atuariais, é que conseguisse viver mais quinze ou dezesseis anos. Nos últimos anos, a taxa Selic em queda permanente tinha sido mais nefasta para a sua saúde do que a hipertensão ou a passagem do tempo. Vinha estudando alternativas para o seu futuro. Analisara com carinho a possibilidade de candidatar-se a vereador na sua cidade natal, na região central, um município de cinco mil habitantes. Irene, com quem vem dividindo a vida nos últimos 41 anos, cortou seco:

– Nestes tempos de dinheiro na cueca, eu me separo.

É um argumento pesado. De nada adianta lembrar que nem todo político usa a cueca como cofre. Quando Irene fala em separação, tem-se o que na política se chama de fechamento de questão. Nada a fazer. No centralismo democrático doméstico, desobedecer caracteriza infidelidade partidária. Perde o mandato. Com um filho na Europa, outro no Rio de Janeiro e a filha nos Estados Unidos, mesmo netos tardios não resolveriam a sua sensação de vazio. As viagens já não o encantavam, se é que algum dia tinham realmente mexido com ele. Conhecia o mundo, 98 países, por obrigação turística. Era a única a maneira de não ser humilhado pelos amigos nas reuniões da confraria.

Outras alternativas, como postar fotos no Instagram, não o interessavam por falta de netos. Estava no mato sem cachorro. O problema, na política, além de tudo, seria o partido. Via defeitos em todos. Para a esquerda, era de direita. Para esta, de esquerda. Para o centro, um extremista. Para os extremistas, um isentão. Técnico aposentado, não pretendia preencher mais formulários na vida. Voltar ao mercado de trabalho, portanto, não estava nos seus planos. Nem comprar uma casa na praia. Temia os roubos e a maresia. Irene disse:

– Você é um chato. Nada serve.

Nada era a casa na praia. Um amigo veio com o que considerava a solução ideal: ir morar em Portugal. A pressão subiu. Passou de 14:

– Não perdi nada em Portugal.

Quando responde assim, o que raramente acontece, sai de baixo. Sem paixões cívicas, não deixa de ser um nacionalista. Não poderia viver longe das suas memórias afetivas. Gremista, precisa ver até camisas coloradas pelas ruas para saber que tem suas referências. Foi depois disso que tomou uma decisão radical. Comunicou à família toda reunida no Zoom num domingo à tarde da interminável quarentena:

– Vou comprar um sítio.

Houve consternação. Irene reagiu com uma velha anedota:

– Sítio traz duas alegrias: quando compra e quando vende.

– Já decidi.

A filha americana fez considerações algorítmicas que ele nem ouviu. O filho europeu tentou retomar a opção portuguesa. Sofreu ameaça de não receber mais o link das reuniões no aplicativo. O filho carioca propôs que ele passasse mais tempo no Rio de Janeiro:

– Se você me der um neto.

– To fora – saltou a nora.

Em família, chega-se a situações inimagináveis num bar, mas com todo carinho, claro. Foi chamado de anacrônico. A palavra machista ficou pendurada em alguns lábios. Onde seria o sítio, perguntaram:

– Na minha terra.

– Eu me separo – fechou questão Irene.

– Por que não num condomínio pertinho de vocês?

A pressão subiu. Sítio em condomínio era para Marques como carnaval sem marchinha, Natal sem peru, mesmo que ninguém coma muito e quase todos achem, na sua casa, meio seco, futebol sem torcida. A filha americana mostrou toda a sua rapidez tecnológica. Disse:

– Acabo de visitar o seu povoado natal pelo Google Earth.

– E daí?

– Não tem nada lá.

– Aplicativos não localizam afetos – ele fulminou.

– Vai sozinho – decretou Irene.

 

*

Releitura

Agora malas vão de Uber,

Quando não estão na primeira classe do avião.

Eu continuo batendo asas na Redenção.


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