Ameaças abjetas

Ameaças abjetas

Manuela d'Ávila enfrenta a infâmia

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      Aí ele me disse: “Vamos em frente”. Então pensei com aquele ceticismo que me caracteriza às segundas-feiras: “Não vai dar”. Assim mesmo, entre aspas. A vizinha estava ouvindo Jorge Drexler e Gal Costa cantarem “Negro amor”. Alguém falou que Drexler é superestimado e eu discordei. Mas não era comigo que falavam. Isso de se meter na conversa dos outros não é comigo. Eu estava saturado do ódio nas redes sociais e da passionalidade que nos domina depois da queda do ideal da racionalidade. Ser racional hoje é quase feio. Um escritor racionalista toma pau.

      Nesse momento um cara falou: “Ferrou. Aceita que dói menos”. De que estavam falando? Quem eram eles? Por que riam quando me olhavam? A mulher filosofou: “Só nos resta matar o tempo com algo diferente. De resto, isso é a vida. Tentar matar o tempo com algo divertido, né?” Não gosto quando terminam com “né”. Toquinho e Vinicius entoaram: “Tem dias em que eu fico pensando na vida” e “a vida tem sempre razão”. Se não tem, quem pode discutir com ela? “Só sei que é preciso paixão”. Será? Não tem demais? Estava tudo confuso e isso não era novidade. O cara fez um comentário político. A mulher reclamou: “Política, não”. Ninguém aguenta mais”. Eu ia falar que não se vive sem política, coisa e tal, mas caiu um prato.

      Toquinho repetia: “Na tonga da milonga do kabulutê”. Era isso. Não, é isso. Juntaram os cacos. Agora era Chico que cantava: “Estava à toa na vida”. A banda passou. Quando foi? Fiquei pensando nisso por um bom tempo. Daria para começar um conto. No dia em que a banda passou... A grande questão é sempre a origem: quando foi que tudo virou? Entortou? Bifurcou? Eu sempre me pergunto: quando foi que tomei a decisão de botar o pé na estrada? Era tão improvável, impossível mesmo. E o Belchior? O que se quebrou dentro dele? E nós: quando foi que perdemos o bonde, o trem?

      Ficaram em silêncio. Creio que para ouvir música. A voz de Caetano Veloso me chegou como uma brisa: “Quem é você?” As respostas me desconcertavam. Eu só queria ouvir. Então me disseram: “Fala coisa com coisa”. Expliquei: falo por música. Riram. A primeira luz do amanhecer finalmente se infiltrou na peça. Poucas luzes são tão belas. Pode ser uma luz leitosa ou glauca. Pode ser um filete dourado se o sol estiver despontando. Pode ser uma ilusão produzida pelo desejo de muitas manhãs. É muito estranho acordar com a voz de Elis Regina lembrando “que eles venceram e o sinal está fechado pra nós que somos jovens”. Eu me espreguicei: sou velho. Sem comorbidades. Nem para a vacina dou. Foi um momento de autocomiseração. Fui beber direto na fonte antes do banho.

      Deixei Belchior inundar a sala com a sua melancolia: “Gente da minha rua como eu andei distante”. O sol lambeu os livros sobre a bancada junto à janela. A manhã tinha a beleza da juventude. A avenida lá embaixo contorcia-se numa esperança qualquer. Belchior, velho errante Belchior, repetia: “Minha normalista linda ainda sou estudante da vida que eu quero dar”. Pensei em galos, noites e quintais e fui dormir mais um pouco.

Mas não foi possível. Já era enorme o barulho da infâmia: "Manuela D'Ávilla, ex-deputada federal pelo PCdoB-RS, usou as redes sociais para denunciar as ameaças de estupro que a sua filha, Laura, de 5 anos, recebeu. No relato publicado nas redes sociais, ela conta que também foi ameaçada de morte, após o pai de um aluno da escola da menina vazar uma foto em grupos de WhatsApp."

Aí não se está mais no terreno da ideologia ou da luta política. É pura ignominia, abjeção, barbárie, comportamento odioso. Aqui deve falar a cultura, a civilidade, a solidariedade, os valores, a humanidade.

Não há música que silencie essa estupidez.

 


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