Antes do final da linha
Poesia em tempos de coronavírus
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Fui caminhar no parque quando a manhã agonizava,
Das manhãs sinto o perfume e a nova esperança,
A luz que sempre avança e a ternura desperdiçada,
Carrego no imaginário muitas palavras que sangram,
Gosto quando as árvores me falam dos pássaros
E dos carros cujas marcas já não identificamos.
Sim, eu falo com árvores, pássaros e fantasmas,
Que me seguem por toda parte como cães sem dono.
Levava comigo um maço de preocupações correntes,
Um artigo da Constituição impresso para leitura,
Um poema de Baudelaire e um comprimido de Rivotril
Sentia falta do celular deixado em casa por segurança,
Lembrava de uma valsa de 15 anos na pré-história,
Quando o futuro ainda não estava para sempre escrito,
Contava os dias e os anos que me aconteceram,
Tanto me aconteceram que nunca passam,
Assim como certas imagens que sobrevoam a casa,
Ou trilhos que bifurcam na memória enferrujada.
Um dispositivo controlava meus batimentos,
Incapaz de saber por quem batia meu coração
Nem de me impedir de vibrar com um gol de 1979.
Andei pelas alamedas do parque como um menino,
Só não corri atrás da bola por causa deste cansaço,
O cansaço dos anos que já foram jogados para fora,
Extenso espólio das emoções vencidas, eleições perdidas,
Mágoas acumuladas, impedimentos mal marcados e partidas.
Quantas vezes parti antes do tempo, o tempo das partidas?
Na caminhada, que sempre faço na mesma direção, confessei.
Confessei tudo que sempre soube, tudo que jamais neguei:
Sou um anarquista confesso como são os que não têm poder,
Um errante contumaz como todos os que erram por exclusão,
Aquele que sonha com a volta do que apenas poderia ter sido,
O homem quem tenta recapturar a ilusão que se evadiu,
O apaixonado que só uma vez esqueceu de mandar flores,
Pois todos, alguma vez, esquecem de dizer quanto amam.
Há muito saí do armário e só me interesso pelos aromas,
Esses cheiros doces do melhor que conseguimos ser.
Caminhei no parque como se levitasse no firmamento
Passei por alegrias e tristezas, miséria e fortuna,
O velho que se arrastava, a menina que triunfava,
O homem que não corria, praticava para vencer,
A mulher que trabalhava para manter a forma,
A vida em todas as suas formas, inclusive a tristeza,
Que não deixa de ser quando a manhã também morre.
Havia, porém, o céu salpicado de nuvens mal desenhadas
Vi um elefante, um violino, o mapa da Itália, uma andorinha,
Vi, tenho certeza, a lagoa da minha infância e um pato selvagem
Vi, quem sabe, Deus espiando o seu mundo por trás da cortina.
*
Genealogia
Sofro de reminiscências e de exílios
Coleciono águas e imagens de tombadilhos.
Carrego no ventre o medo da tua ausência,
Esse monstro com perfume de jasmim
Que me espreita desde o amanhecer.
Ontem, pedi pizza pelo telefone
Hoje, pedi pizza pelo aplicativo
Amanhã, falarei de utopia na lua.
Tenho cabelos metálicos, platinados,
Rugas onde poderia cultivar girassóis
E essa gigantesca e medonha certeza
De que meus passos já não ressoam.
Fui de homem a fantasma numa encarnação.
*
Tardes amarelas
Sempre me fascinei com o trigo maduro
Moedas faiscavam em minhas mãos vazias
Vi o poente incendiar um canto do céu
Era tanto vermelho que sangrava
Colorindo as nuvens mais lentas
O vento sibilava a contracorrente
Eu esperava a hora de levantar voo.