As portas de acesso

As portas de acesso

Uma análise do romance Acordei Negro

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Eron Duarte Fagundes*

Quando se lê um romance que se bifurca em vários episódios, a gente pode encarar os episódios como portas que dão para o cenário da narrativa. Os cenários de um romance múltiplo são também o cenário, único e mutável que se descortina diante do romancista sentado em sua escrivaninha. Pode-se escolher qualquer porta, agarrar-se nela e penetrar na veia do romance por esta porta escolhida.

“— Ce que je voudrais, disait Lucien, c’est raconter l’histoire, non point d’un personnage, mais d’un endroit — tiens, par exemple, d’une allée de jardin, comme celle-ci, raconter ce qui s’y passe —depuis le matin jusqu’au soir.” É a voz do narrador do francês André Gide no comecinho de Les faux-monnayeurs (1925).

Uma alameda de jardim. Uma redução teatral dos cenários. Por pouco provável que pareça, a leitura em progresso de Acordei negro (2019), de Juremir Machado da Silva, me chega assim. É verdade que a história (ou as histórias) de Juremir circula por vários recantos da terra, a África, a Ásia, o Rio, São Paulo, Paris. Mas há uma característica mágica nos fios dispersos observados pelo narrador que leva este leitor, em seu tempo próprio de leitura, como queria um antigo crítico, A.A. Mendilow, a imaginar o escritor abarcando um cenário único, o cenário da terra. Uma alameda de jardim do universo. Trata-se duma ficção da crítica? Mas é no que acredito: numa aproximação destes polos, a crítica e a ficção, aquela mimetiza a esta. Ou então: como se o romancista fosse um realizador de filmes e, um pouco à maneira do alemão Werner Herzog em Fata Morgana (1971) percorresse o mundo de cima dum caminhão e edificasse um longo travelling lateral para olhar os cenários (o cenário) que se apresentam.

Quelimane fica na África: Moçambique. Samarcande é na Ásia Central. “Acordei negro” é a frase que abre o romance. Vai-se contar a história de um ex-branco que um belo dia desperta negro. Como a personagem de Franz Kafka, um ex-homem que uma certa manhã, ao sair de seu sono, é um inseto. O ex-branco vai enfrentar o racismo que muitas vezes corre inconscientemente pelas relações entre as pessoas. O importante, revela-se na frase final, é não desistir do sonho. “Meu sonho de ser negro”. Para aumentar os pecados, o negro-ex-branco tem uma doença final. Curte intensamente suas lições de abismo. Nem o russo Leon Tolstoi, nem o brasileiro Gustavo Corção. Longe de Kant, longe de Sartre. É uma outra cor. “O azul será mesmo a cor da morte?” Trata-se do indivíduo destruído por sua condição humana; o que acena com a salvação são certas características mágicas da literatura praticada por Juremir.

Esta magia vem das fortes ligações da literatura de Juremir com as formas poéticas, algo bastante sensível desde Cai a noite sobre Palomas (1995). É significativo que o penúltimo gesto narrativo de Acordei negro seja um poema: denso, giratório como o restante da narrativa, grandiloquente em alguns momentos mas sempre cortante, capaz de perfurar certas raízes intrincadas. Há um tom de absoluto enlevo depois que o leitor fecha a porta final do romance.

A porta. O protagonista está no metrô, em São Paulo, e dá com uma porta que se abre para sua infância. Não se procure a porta concretamente. A porta de que falo é uma mulher. Esta mulher foi amiga de infância do narrador. Como porta, a mulher abre a mente narrativa para o passado, a meninice. Lá pelo fim esta mulher retorna, avizinhando-se a morte do narrador. É a mesma porta e também outra, pois abre o olhar para outros cenários e no entanto o mesmo cenário. Entre as várias portas do romance esta me intrigou mais que todas. Não sei os motivos. Senti um calafrio quando a topei lá no início. Espantei-me com a natureza inevitável de sua reaparição no fim. Esta porta é um pouco como o cenário único de Gide onde transitam vários seres: por mais que naveguemos por outras paragens, ela volta como uma luz.

  • Crítico literário

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