Barco sem rumo

Barco sem rumo

Capitães passam, barcos ficam

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      Um velho marinheiro contava suas experiências aos netos, que o ouviam entediados, na periferia de uma grande cidade longe do mar. Tinha vivido muito, navegado demais e conhecido todos os perigos. Apesar de roído pelo tempo e da plateia desinteressada, tinha o que dizer. A sua sabedoria cabia em fórmulas precisas e contundentes:

– Se o barco perde o rumo, só resta abandonar o capitão – ensinava.

      Não era uma lição banal. O senso comum imagina que o capitão deve afundar com o navio. Para o velho marinheiro, porém, o barco é sempre mais importante do que o capitão. Sem constrangimentos, afirmava:

– Os capitães passam, os barcos ficam.

      Estimulado por um vizinho a desenvolver o seu raciocínio, o velho lobo do mar não se mostrava avaro em metáforas, argumentos e cores:

– Se o capitão coloca a tripulação em risco para salvar a pesca, o único jeito é se rebelar contra ele. Se o capitão entende que morrer para pescar mais faz parte da lei da vida, só podemos desobedecer.

      Diante do contra-argumento de que homens sempre morreram no mar lutando contra criaturas imensas ou tempestades homéricas, sob as ordens de capitães tirânicos e dispostos a morrer com seus barcos, o encarquilhado marinheiro aposentado baixava o volume da televisão, ajeitou a almofada nas costas cansadas e falava com doce mansidão:

– O tempo dos capitães tirânicos e despóticos já passou. Não queremos que afundem com seus barcos nem que afundem o nosso barco. Nem que sejam suicidas ou amigos da morte. Um capitão deve ser um líder de visão que não coloca a vida dos outros em perigo. A sua missão, com ajuda de instrumentos científicos, é conduzir o navio a bom porto.

      Um neto irreverente não se conteve. Olhou para o avô com ar de desdém. Hesitou. Por fim, desferiu a sua crítica com uma boa risada:

– Então não vale mais a pena ser capitão!

– Por que não? – perguntou laconicamente o velhinho.

– Capitão é para mandar – disse o neto.

      O ancião observou o neto por alguns instantes. Parecia não acreditar no que tinha ouvido. Ou, quem sabe, refletia sobre a educação dada pelos filhos aos seus meninos. Por fim, balbuciou timidamente:

– Onde você aprendeu uma bobagem dessas, garoto?

– Nas redes sociais – respondeu sinceramente o guri.

      O marinheiro devastado pelo tempo tossiu. Parecia refletir para não cometer qualquer demasia quando voltasse a falar. Estranhamente o neto interessou-se pela continuação. Ficou esperando o velho pensar.

– Um capitão, meu neto, nos dias de hoje, depois de séculos de ciências náuticas, deve ser um homem esclarecido, informado, ponderado, um espírito agudo capaz de antecipar coisas e tomar decisões sábias. Não pode mentir, não pode enganar, precisa saber agregar. Nas horas difíceis, o capitão une todos em torno dele. Quando os subordinados sofrem, o capitão sente a dor deles como se fosse deveras a sua dor.

      Fez-se silêncio na sala em cujas paredes imagens desbotadas de barcos sinalizavam mais uma paixão extinta do que uma estética viva. O marinheiro inclinou-se para frente e falou quase em tom de confissão:

– Na minha longa vida no mar, por toda parte, vi mais capitães serem desembarcados pelo bem do navio que capitães afogados pela honra.

– Então o senhor viu capitão ser demitido?

– Sim, meu neto, muitos. Demitidos pelos donos dos navios ou por pressão das tripulações e dos passageiros. Capitão segue regulamentos. Se não respeita as normas, pode legalmente ser afastado. A grande lei da navegação é bem simples: capitão não põe a vida de quem quer que seja em risco. A sua missão é fazer a travessia com todos vivos.

      Assim se passavam os dias na casa do arqueológico marinheiro. Se é verdade que ele repetia as suas histórias, para zombaria dos netos, também é verdade que, certos dias, afinava o seu pensamento e calava a plateia. Uma netinha de nove anos arriscou uma pergunta sinuosa:

– Um capitão, pelo que o senhor fala, precisa ser quase um super-homem.

      O avô sorriu. Havia bondade no seu sorriso entre tantas rugas. Esperou que todos o contemplassem. Milagrosamente isso aconteceu.

– Não, filha, é justamente o contrário. O capitão deve ser um homem que ouve, presta atenção, considera o saber dos outros e só decide com prudência. Se tem doença a bordo, ele ouve o médico e não o contradiz. No máximo, argumenta por sua experiência. O grande capitão ouve mais do que fala, pacifica mais do que provoca brigas, cerca-se dos melhores e não os submete à humilhação, tem seus mitos, mas não renega o conhecimento científico, sabe que navegar é preciso por se amparar em ciência e que viver é perigoso por ser inexato, exigindo cuidado para preservar o mais valioso dos bens: a vida. No mar, vi homens morrerem. Jamais encontrei um capitão que desse de ombros para uma morte.

      A netinha encantou-se: “Onde o senhor aprendeu a falar tão bem, vovô?” Ele riu lisonjeado. Respondeu com uma franqueza deliciosa:

– Eu era o esquisitão dos navios. Nas viagens, lia pra matar o tempo.


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