Benjamin e Hendrix
Elogio do pensamento e da arte indomáveis
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Walter Benjamin, em 26 de setembro de 1940, e Jimi Hendrix, em 18 de setembro de 1970, morreram em condições nebulosas e até hoje intrigantes. Dois suicídios. Duas suspeitas de assassinato. Duas formas de levar alguém à morte. Benjamin fugia do nazismo. Hendrix não suportava mais a pressão da própria fama. O primeiro morreu num vilarejo dos Pirineus, Portbou, na Espanha, de onde pretendia embarcar para os Estados Unidos, escapando da Europa e do medo. O segundo expirou num hotel sem charme de Londres, o Samarkand. Faz pensar nesta história em tom de fábula que reproduzo em meu romance “Acordei negro”: “Na praça da cidade, em presença do rei, um capitão vê a morte lhe acenar. Desesperado, avisa o rei de que vai fugir para Samarcande. E dá no pé. O rei, do alto da sua autoridade incontestável, interpela a morte, que lhe responde: ‘Eu não queria assustá-lo. Só pretendia dizer-lhe que temos um encontro marcado esta noite em Samarcande’”.
Benjamin era um intelectual brilhante, ligado à chamada Escola de Frankfurt, críticos da “indústria cultural”. Hendrix foi o maior guitarrista de todos os tempos. Um gênio do ensaio, morto aos 48 anos, e um gênio da música, falecido aos 27 anos. Benjamin, barrado pela polícia espanhola, teria se matado com uma overdose de morfina. Hendrix teria morrido afogado no próprio vômito depois de misturar tranquilizantes com álcool. Especula-se que Benjamin possa ter sido morto pelos nazistas. Hendrix pode ter consumido remédios em excesso sem a intenção de morrer. Há quem pense que pode ter sido assassinado por seu empresário, de olho num seguro de vida para saldar dívidas com a máfia. O ensaísta alemão teve uma tese reprovada na banca, em Franfkurt, e uma vida de textos exuberantes e sofisticados. O músico queria parar de fazer shows para se dedicar à criação em estúdio.
O inquieto Benjamin estudou e compreendeu o poeta Charles Baudelaire melhor do que qualquer outro. Hendrix era Baudelaire. O alemão refletiu sobre a perda da aura da obra de arte na “era da reprodutibilidade técnica”. O americano era a própria aura reproduzida tecnicamente em escala jamais vista antes. Complementares e antagônicos, rebeldes e incontroláveis, Benjamin e Hendrix queriam outro mundo por caminhos bem diferentes. A arte era o ponto que os unia. Benjamin dissecou a modernidade com sua ânsia de ruptura. Hendrix era a modernidade, a pós-modernidade e a hipermodernidade em pessoa por antecipação, a ruptura em estado permanente, o fluxo e a vertigem condensados na eletricidade como parte da criação musical.
Eles tinham fome de liberdade e de arte. Que se pode querer mais na vida? Só que um enfrentava a ascensão da barbárie e o outro sofria com a força da engrenagem, o sistema que lhe exigia performances e rendimentos repetitivos. Hendrix queriam sempre o novo. Os fãs exigiam o que para ele já era velho. Benjamin descreveu o avanço da barbárie: “Algumas das melhores cabeças já começaram a ajustar-se a essas coisas. Sua característica é uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse século”. Jimi Hendrix: “Há uma casa vermelha longe daqui/É lá onde o meu amor está/Há uma casa vermelha longe daqui, querida/É lá onde o meu amor está”. Pois é.
*
Pássaro
Na mata há um pássaro parado no ar
Tem o peito amarelado de um pomar
Lembro daquilo que só eu poderia ter sido
Se não cantasse o abismo da solidão.
Há uma luz que pende como uma espada
Brilha na lâmina o sol da primavera
Enquanto trafico poesias desconsoladas
Como armas para o massacre das almas.
*
Tempo, tempo
Há o tempo de morrer em vida
E o tempo de viver a morte,
Lâmina que corta a eternidade
Sol que se reflete nos trilhos
Linha férrea para sempre interrompida
Chove na estação que prometia a partida
Para onde vão os trens que morreram?
Caminha-se entre vivos em tempos sombrios
Morre-se a cada dia de silêncio banal.