Brasil e seus intérpretes

Brasil e seus intérpretes

Dos modernistas aos antimodernos

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O mal proporcionado pelas formigas no paraíso tropical, através dos séculos, entrou para as melhores páginas da literatura. Mário de Andrade, em Macunaíma, uma das obras fundadoras do modernismo brasileiro, que se implantou com a Semana da Arte Moderna de 1922, imortalizou o dístico: “Pouca saúde muita saúva, os males do Brasil são”. Mário de Andrade, como os cientistas sociais, debruçou-se sobre a problemática da identidade nacional e Macunaíma é a própria encarnação do anjo do paraíso.
O império das formigas contra a decisão inquebrantável do homem encontrou espaço também no esplêndido romance de Lima Barreto, de 1911, em que o patriota Quaresma, convencido de que o Brasil superava em qualidades todos os concorrentes universais, luta, como um Quixote, para fazer ver a todos que o paraíso não era a promessa do amanhã, mas a realidade radiosa do presente. A tragédia de Quaresma deflagrou-se com a redação de um requerimento, que acabou na mesa da Câmara, defendendo a adoção, pelo Congresso Nacional, do tupi-guarani como língua oficial do Brasil, dado que o português viera de fora. Os excessos de Policarpo levaram-no ao ridículo, à depressão, ao manicômio e ao recolhimento em um sítio, longe da balbúrdia do Rio de Janeiro e das perdições do futuro.
Lá, em silêncio, ele resolveu tirar do solo os melhores alimentos. Na generosa terra, com zelo, tudo se multiplicaria. Os dias de cansaço e obstinação esbarraram em pequenos inimigos. Barreto, um negro genial, e marginalizado, plasmou com brilho um dos tantos fracassos do alterego do brasileiro médio no final do século XIX: “Abriu a porta; nada viu. Ia procurar nos cantos, quando sentiu uma ferroada no peito do pé. Quase gritou. Abaixou a vela para ver melhor e deu com uma enorme saúva agarrada com toda fúria à sua pele magra. Descobriu a origem da bulha. Eram formigas que, por um buraco no assoalho, lhe tinham invadido a despensa e carregavam as suas reservas de milho e feijão, cujos recipientes tinham sido deixados abertos por inadvertência. O chão estava negro, e, carregadas com os grãos, elas, em pelotões cerrados, mergulhavam no solo em busca da sua cidade subterrânea”.
Quase 400 anos haviam passado desde o desembarque português. A mesma ordem de problemas repetia-se. Policarpo Quaresma não representa o lunático isolado, mas o homem comum, ingênuo, sério, apaixonado e disposto a ajudar a pátria. Na guerra com os moinhos de vento, conheceu a desonestidade dos políticos, a covardia, a rapacidade, a ignorância e a maldade. Em pouco tempo, aprendera que o paraíso idealizado se chocava com a maleabilidade do dia a dia. Quaresma deu-se conta da existência de dois Brasis. O primeiro, das utopias, voltado para o futuro, quando todo o potencial adormecido seria explorado. O outro, do presente, feito de malícia, argúcia, violência, jogo, aparência, retórica e mentiras.
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    Em tempos difíceis, uma notícia alvissareira: surge Livraria e espaço Cultural Coralina, em Porto Alegre, na Galeria Chaves, projeto do Pedro Paulo, o Pepê, conhecido organizador de feiras do livro pelo Interior. Boa sorte.

 


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