Brasileiro ligou o ferre-se

Brasileiro ligou o ferre-se

Parte da população quase ignora o vírus

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      As festas oficiais da virada do ano foram comedidas. Em contrapartida, muita gente fez festa clandestina ou se aglomerou em praias. A sensação que passa é simples: uma parte da população ligou o ferre-se e mandou ver na base do seja o que Deus quiser. Os telejornais queriam criticar, mas, acostumados a festejar o amontoamento à beira do mar, falavam de gente curtindo o sol. Seres puramente racionais, diante da ameaça posta e dos números de mortes e de infectados divulgados, teriam feito uma única coisa: ficar em casa. Milhares (milhões?) não entenderam assim. Fiquei pensando no cálculo feito por eles. Fiz um cálculo sobre a mega da virada. Nunca jogo. Concluí que é irracional não jogar: não se ganha nada e perde-se a oportunidade de ganhar tudo. Qual o cálculo para o ferre-se do vírus?

      Se é para morrer mesmo, que seja festejando? Não bate. A vacina está aí. O que custa esperar mais alguns meses para balançar o coreto? Seria o medo de não chegar lá por causa do vírus ou de qualquer outra razão? Provavelmente não. A explicação parece mais banal: a pessoa acha que tem exagero no perigo e que não vai acontecer com ela. Um espírito cáustico diria: que bando de irresponsáveis! Gente comprando como se não houvesse amanhã, acotovelando-se na areia como se não existisse Netflix, WhatsApp e todos esses brinquedinhos para distrair adultos. Ferre-se ligado, tudo é possível. Celebridades não se controlam. Como passar uma virada de ano sem virar notícia?

      O pessoal liga o ferre-se, enfia o pé na jaca e, quando dá ruim, exclama com ar compungido: “Foi mal”, “errei”, “não tenho compromisso com o erro”. O governador de São Paulo pagou mico ainda em 2020: “Fiquem em casa que eu vou pra Miami”, zombou Jair Bolsonaro, que foi nadar numa praia paulista. Fiquei com uma dúvida: por que essa dificuldade de ficar quieto, de passar uma virada de ano em casa? O problema é a compulsão estimulada: mexa-se, corra, pule, viaje, viva, não pare, etc. O ferre-se fica piscando. A pessoa olha e aperta. Mais uma vez ficou provado que a televisão não tem a menor influência positiva sobre telespectadores: “Se beber, não dirija”. A turma enche a cara e se acidenta. “Use camisinha”. A gravidez precoce explode. Fique em casa, proteja-se do vírus e projeta os seus. Que nada!

      Multidões nas praias. Um espírito rabugento soltaria um impropério: o rebanho é incontrolável mesmo. O imaginário ultraliberal fala na supremacia das liberdades individuais. Neste caso, o infectado numa festa não deveria recorrer a hospital público. Mas aí seria a barbárie. Ou já é? Em quanto tempo o mundo todo poderia ser vacinado se a cooperação internacional tomasse o lugar do egoísmo? Ou seria até questão de interesse? Há talvez quem ligue o ferre-se e pense: se for para todo mundo morrer, quero ser o último e ganhando dinheiro.

      Na virada, Joe Biden e a esposa estimularam a população a tomar vacina da Covid. Em live, Jair Bolsonaro fez o oposto: “Não vou tomar a vacina", reiterou. "Não tem que ter medo da hidroxicloroquina. Comigo deu certo", teimou. "A máscara não protege de nada, isso é uma ficção", desinformou.  "Uma forma de blindar a Covid é a vitamina D. Então, você pega sol”, desensinou. Não faltou comemoração: “Mito”.


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