Bridgerton, distração em meio ao horror
Série ajuda a não ouvir as sirenes
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Na minha rua, as sirenes das ambulâncias soam sem parar. Estamos no auge do horror. No quase pânico, algum entretenimento ajuda a tapar os ouvidos, acalmar o coração e passar o tempo até o sono agitado.
Vi a série “Bridgerton”, que é também o sobrenome da família protagonista do folhetim. Confesso que não a entendi bem. Sei que faz muito sucesso. Tem certo tom de humor, de caricatura e de crítica social. Quando falta história, a partir de certo momento, sobram cenas de sexo. Os atores são bonitos. O telespectador não reclama. Fui ler sobre o período enfocado na obra, o começo do século XIX, 1813, na Inglaterra, chamado de regência, pois o rei estava louco. A rainha, segundo certos pesquisadores, era descendente de africanos. Na série, diferentemente do que acontece nos livros de Julia Quinn que a inspiraram, a rainha é negra. A nobreza tem brancos e negros convivendo em igualdade plena. Liberdade “poética” ou manifesto?
Romântica, pitoresca e mais ou menos inverossímil, “Bridgerton” é apresentada como uma crítica corrosiva à competição na nobreza britânica por casamentos vantajosos. A temporada de fazer a corte é uma temporada de caça. As moças são oferecidas e avaliadas em bailes e em visitas aos seus lares. Vale tudo. Uma narradora misteriosa, Lady Whistledown, cuja identidade verdadeira todos desconhecem, publica periodicamente um folheto de fofocas que põe fogo no parquinho. Acertei desde o primeiro capítulo o nome da “jornalista”. Séries e novelas são como jogos de futebol: depois de algum tempo a gente conhece todos os truques e esquemas. As variações são bem limitadas. Há dois eixos dominantes: o que os personagens sabem e público não; o que público sabe e os personagem não. É só combinar e concluir.
Depois de muita reflexão, cheguei a uma conclusão de alto teor sociológico: “Bridgerton” é um bom entretenimento. Oito episódios fluentes e simpáticos, que passam mais rápido do que o primeiro tempo de uma partida decisiva. É muito provável que nada sobre na mente depois de um mês. Melhor. Abre espaço para outras aquisições culturais. Peças de teatro tinham quatro ou cinco horas no auge. Os filmes reduziram nossa capacidade de atenção para duas horas. As séries vão nos adestrar para uma hora no máximo. “Bridgerton” pode ser também uma sátira aos tabloides ingleses. O gosto pela fofoca acompanha o público e o jornalismo desde os primórdios. Primeiro vieram as fake news. Quem quiser esclarecimentos, veja o documentário “O mercado de notícias”, do gaúcho Jorge Furtado. Se estiver entediado e pensando até em ver, por desespero, o BBB21, não hesite: opte por “Bridgerton”. Eu recorro a uma tríade: telejornal, futebol, séries.
No telejornal, vejo mais do mesmo (drama). No futebol, cada vez menos do mesmo (espetáculo) e do que já foi mais (diversão). Nas séries, vejo telenovelas com roupa nova. No hiperespetáculo – sempre se deve dar um tom erudito ao coloquial para elevar a temperatura intelectual – consumimos imagens. Outro dia, fiz uma tomografia. Imagens de 25 séries foram detectadas no meu corpo. Na ecografia, os pixels já eram evidentes. Ainda bem que não tinha visto ainda “Bridgerton”. Ou apareceria o fotograma de uma cena de nu dorsal.