Caiu a noite em Palomas

Caiu a noite em Palomas

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      Anoiteceu em Palomas num 1º de janeiro. Durante quatro anos não se viu luz. As pessoas tateavam na escuridão em busca de uma referência. Como o pior sempre pode acontecer, sobreveio uma pandemia. Mortos amontoavam-se a cada dia e vivos buscavam vagas em hospitais de lamparina nas mãos. Rapidamente a sociedade dividiu-se entre os detentores de velas e os donos de geradores de eletricidade. Houve quem previsse que a escuridão passaria logo e que o vírus morreria de frio ou de calor em três semanas. Nessa época, em Palomas, aconteciam coisas estranhas: um grupo de terraplanistas contestava nas redes sociais a esfericidade da Terra, as ideias de Darwin eram ridicularizadas, vozes divergentes eram silenciadas em nome da nova política, de velhos hábitos e da realpolitik: as conveniências.

      Mesmo contestada a ciência palomense entrou em ação em busca de uma fonte de luz e de uma vacina. Quanto mais iluminavam com os meios possíveis, mais eram contestados pelos obscurantistas, que formaram um partido em defesa das virtudes da escuridão. Palomas, nessa época, ficou praticamente acéfala. O poder passou a ser disputado entre militares de pijama, políticos fisiológicos com ou sem gravatas e franco-atiradores certeiros. A extrema direita aparelhou tudo o que pode em nome da independência das instituições e dos valores cívicos do passado e do futuro. A esquerda tentava enxergar um palmo adiante do nariz sem muito sucesso. Adversários dos donos do poder eram vítimas de fake news. O sargento governante blindava a sua família contra as acusações que mergulhavam Palomas mais ainda nas trevas.

      Em meio à escuridão interminável vagava um homem franzino e míope, com grandes óculos de lentes espessas, o velho Candoca. A quem lhe perguntava o que buscava com seu lampião, ele respondia, otimista:

– Um líder equilibrado.

      Os anos de escuridão em Palomas esconderam a corrupção, que estranhamente deixou de incomodar como antes, embora as rachadinhas pudessem ser vistas até mesmo à luz de um fósforo. O mercado palomense mostrava-se mais pragmático do que nunca: se a economia não ia bem, o comunismo parecia-lhe sob controle e isso já o entusiasmava. A parte hiperconservadora da população palomense aplaudia o que chamava de reação ao “mimimi de pretos, ambientalistas, gays e minorias em geral”, rotulados de vitimistas, chatos, malas e inimigos do progresso e dos valores ocidentais. No escuro, muitos já se achavam iluminados e até felizes. Começaram campanhas pela ampliação do tempo de escuridão.

      Os cientistas palomenses conseguiram uma vacina graças ao trabalho de um chinês. O bloco obscurantista protestou na lua cheia:

– Vacina de comunista, nunca. De chinês já basta o vírus!

      Era assim que falavam os palomenses que se consideravam avessos a ideologias, amantes da liberdade e defensores da verdade absoluta. Alguns nunca acreditaram na existência do vírus. Continuaram aglomerados em carreiras de cancha reta e bailes de galpão. A noite parecia eterna. A única esperança era uma frase do doce Candoca:

– Não há mal que dure sempre.


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