Caiu mesmo o muro

Caiu mesmo o muro

Muro de Berlim caiu há 30 anos. E o da desigualdade?

publicidade

Em 9 de novembro de 1989, há 30 anos, o mundo ficou estarrecido: caía o muro de Berlim, a barreira artificial que separava Berlim Ocidental de Berlim Oriental, capitalismo e comunismo, dois mundos num mesmo país, dos países divididos por uma ideologia, duas ideologias contidas por “66,5 km de gradeamento metálico, 302 torres de observação, 127 redes metálicas eletrificadas com alarme e 255 pistas de corrida para ferozes cães de guarda”, duas faces de um pesadelo.

      Construído em 1961, o muro de Berlim seria um dos maiores símbolos da Guerra Fria. Estive em Berlim em 1991. As cinzas do muro ainda estavam frescas. Podia-se comprar um pedacinho do muro por alguns marcos. Adquiri um, que perdi antes de chegar ao Brasil. Venderam-se tantos que daria para cercar o mundo com esses souvenires da tragédia. Para meu livro “O pensamento fim do século” (L&PM, 1993), entrevistei grandes pensadores, de Umberto Eco a Jürgen Habermas e Niklas Luhmann. Com alguns deles, falei sobre a grande virada representada pela queda do muro. Um dos entrevistados de antes do colapso do socialismo do leste europeu, em setembro de 1989, o polonês Marek Siemek, palestrante em Porto Alegre, tentava salvar os móveis ao afirmar: “O comunismo está morto. O marxismo vive”. Se vivia, estava a caminho de ser embalsamado.

      O muro de Berlim fez da pretensa utopia uma distopia escancarada. Em 1991, passei três meses na Alemanha. Andamos por várias cidades do Leste. Os rastros do “socialismo real” estavam por toda parte: pobreza, poluição, conjuntos residenciais uniformizados e tristes. O capitalismo costuma alternar lugares espetaculares com bairros pobres. A periferia pobre de Paris nada tem de luminosa. Berlim Ocidental esbanjava riqueza e mantinha sua pobreza a certa distância. Berlim Oriental tinha a imponência da avenida Unter den Linden, anterior ao comunismo, e uma placa de chumbo, se vale essa metáfora, como marca do restante. Contra a potência automobilística ocidental, os modestos Traban soviéticos.

      Como foi possível que a população reprimida por décadas, contida pela força gélida da ditadura em nome do proletariado, num sobressalto derrubasse a sua Bastilha em tão pouco tempo? A psicologia das massas, de certo modo, continua um mistério. O muro começou a ser construído quando três milhões de pessoas decidiram abandonar o paraíso socialista e entrar de mal e cuia no inferno capitalista. A resposta dos guardiães do novo mundo veio com 155 quilômetros de arame farpado. Depois, tijolo e concreto, com uma altura entre 3,5 e 4 metros, fechariam o horizonte. Mais de cem foram mortos em 28 anos tentando pular de sistema. O comunismo não suportava ser abandonado, trocado, deixado para trás.

 

Nostalgia da segurança

 

      Em maio de 1989 a fronteira entre Áustria e Hungria foi liberada. Aumentou a pressão sobre a Alemanha Oriental. Em 9 de novembro, o governo autorizou a passagem para a Ocidente. Os milhares que se postaram à espera da abertura não resistiram à tentação de derrubar a parede que os mantivera por tanto tempo prisioneiros. As imagens falam sozinhas: o socialismo soviético, pretensamente edificado para libertar os trabalhadores, mantivera-os prisioneiros, retidos por um horrendo muro. A festa dos libertados revelou a enormidade do sofrimento.

      Em fevereiro de 1991, em meio ao rigor do inverno berlinense, convivi com jovens escritores do lado oriental. Eles sonhavam ser famosos, queriam contar a adolescência vivida no comunismo, recebiam-nos em seus modestos apartamentos sociais. Tínhamos um ou dois intérpretes. Alguns jovens reclamavam que o capitalismo ainda não lhes dera uma vida melhor. A maioria resumia o passado com uma frase simples: “Não queiram passar pelo que passamos”. Entre as pessoas mais velhas, porém, cresceria a nostalgia da segurança e da estabilidade.

      Eu tinha 27 anos de idade em 1989. Era jornalista de redação. O muro ruiu numa quinta-feira. Preparei um caderno dominical, sob o comando do inesquecível Emanuel Mattos, sobre o acontecimento. Foi emocionante. As agências de notícia despejavam material. Especialistas produziam análises aos borbotões. Militantes de esquerda não sabiam o que dizer. Liberais comemoravam. Uns viam o fim da história, tese que Francis Fukuyama requentaria e consagraria. Outros viam o começo de uma nova história. O francês Jean Baudrillard falaria em fim da greve dos acontecimentos com o 11 de setembro de 2001. Nada teria acontecido depois da queda do muro e do ocaso retumbante da União Soviética?

      Penso na queda do muro de Berlim e narcisisticamente penso na minha juventude. Eu era ousado e tinha todas as utopias do mundo. Não era liberal, não era marxista, era um libertário de cabelos compridos. Aplaudi a queda do muro, vibrei com o fim do stalinismo, discuti com amigos nos bares até o amanhecer, via o mundo rodar em torno do meu umbigo. Trinta anos passaram-se. O muro agora é uma ruína da memória.

*

Donald Trump quer o seu muro contra latino-americanos.

O Chile ergueu um muro neoliberal.

A América do Sul está em convulsão.

O Brasil sobe no muro da polarização.

Quantos muros ainda precisam cair?

 


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895