Califórnia, maconha e capitalismo

Califórnia, maconha e capitalismo

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      Para começo de conversa, devo dizer que sou viciado. Em água mineral com gás. Trabalho duramente para me livrar das bolinhas. Não suporto dependência. É tudo. Por essa mesma razão, vez ou outra deixo de ser torcedor do Internacional. Nem vinho francês eu bebo há muito tempo. Levo uma vida frugal: como pouco, bebo água e só trabalho um dia por semana depois das sete da noite. Tudo isso para dizer que algo está acontecendo nos Estados Unidos. Já é o oitavo Estado a liberar o consumo recreativo de maconha. Desta vez, foi a Califórnia. Trata-se do Estado mais populoso dos Estados Unidos. O mais rico. Se fosse país, seria a sexta economia do mundo. E liberou geral. Cada pessoa adulta pode plantar seis pés em casa e comprar 28 gramas de cada vez.

Os californianos compreenderam o seguinte: a guerra contra as drogas é cara, ineficiente e inútil. Produz violência, corrupção e crime organizado. A explicação para esse fracasso está na essência da ideologia americana: o capitalismo. Se há demanda, há oferta. Não se elimina a lei da oferta e da procura por decreto. A Lei Seca, que proibia o consumo e o comércio de álcool, provou isso para sempre. Será que os californianos se esqueceram de consultar os especialistas brasileiros que sugerem aumentar a repressão e botar na prisão todos os consumidores de todos os tipos de droga? A Califórnia vai faturar em impostos, criar empregos e aquecer ainda mais a sua economia. Gastará em propaganda contra os perigos da dependência. É negócio.

Negócio e liberdade. A maconha pode desencadear ou acelerar doenças mentais? Parece que, em certos casos, sim. O álcool também. Existe uma ideia nem sempre explicitada de que se pode consumir álcool socialmente, em pequenas quantidades, sem afetar a percepção, enquanto qualquer uso de maconha distorceria a compreensão da realidade. Em razão disso, beber álcool seria admissível em algum grau por não ser necessário dar “barato”. O cara beberia para quê? Pelo gostinho? Quase toda bebida alcoólica tem gosto ruim. A proibição de beber quando se vai dirigir está aí para provar que não há margem alcoólica de manobra.

O fundamentalista diria: proíbe tudo então e fim de papo.

A lei da oferta e da procura não permite. A questão é: qual a maneira menos pior de lidar com um problema levando-se em consideração: princípio de realidade, liberdade como fundamento da vida de adultos em democracia, eficácia na aplicação de leis reguladoras, custo-benefício na repressão ou no tratamento, conhecimento científico sobre o que está em jogo, da substância, no caso, aos seus efeitos e consequências e “ar do tempo”, aquilo que a sociedade quer. Tem sido assim: as sociedades proíbem a cada época certas drogas e liberam outras tão ou mais nocivas, como o álcool.

E o cigarro. A vantagem do cigarro seria provocar morta lenta e não distorcer a percepção na hora de dirigir ou de fazer qualquer coisa? O conceito de fumante passivo já provou que o cigarro afeta terceiros. Que se fume sozinho em casa? É o que valerá para a maconha. Há diferenças? Certamente. E semelhanças. E contradições. Que fazer? A verdadeira guerra às drogas pode ter outra explicação: guerra moral. Quase toda moral é imperativa. O barato é se impor como verdade.

A verdade, porém, é uma calça velha azul e desbotada...

Ou não?

 

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